• Escravidão e política do embranquecimento

  • 26/out 08:00
    Por Gastão Reis

    A questão da escravidão e a política do embranquecimento são dois temas que nos permitem analisar o que foram os primeiros quatro séculos de nossa História em contraposição à nossa desastrada experiência republicana de pouco mais de um século. As peculiaridades brasileiras não têm sido narradas de modo correto. As novas pesquisas nos permitem entender o dito racismo estrutural versus o racismo visceral, conceito este que se aplicaria ao caso americano como uma luva, e a impropriedade do estrutural no nosso caso.

    Desde os tempos em que a humanidade passou a ter registros escritos de sua história, entre três e quatro mil anos A.C., a presença da escravidão foi uma constante. As guerras entre tribos em praticamente qualquer continente resultavam na escravização dos derrotados. Por 50 ou 60 séculos, aqui inclusa a era cristã, a escravidão era vista como um fato normal da vida. O grande Aristóteles aceitava a ideia de que o escravo era alguém inferior ao homem livre. E ele não estava sozinho nessa visão.

    Quando pensamos em figuras históricas como Zumbi e Princesa Isabel, com frequência, esquecemos de usar o filtro da ideia cujo tempo chegou. Ou seja, o fato de Zumbi ter escravos não deveria causar espanto. Ele viveu no século XVII, época em que a abolição total da escravidão nem sequer era cogitada. Ninguém queria ser escravo, mas todos queriam ter escravos. A África e o resto do planeta funcionavam assim. Entender isso é fundamental para não cair na bobagem de impor ao passado os valores que hoje nos são caros.

    A Princesa Isabel viveu no século XIX e faleceu no início de século XX. Mais de dois séculos a separavam de Zumbi. Em seu período de vida, a escravidão passou a ser vista com outros olhos, aqueles que não a aceitavam mais como algo normal, como o foi por cinco milênios, talvez mais. As pessoas, além de não quererem ser escravas, também não queriam que outras o fossem. Essa mudança de mentalidade foi abraçada por Isabel desde muito cedo, levando-a vida afora como sua grande luta, coroada com a assinatura da Lei Áurea, em 1888.

    Façamos agora um contraponto entre o que ocorreu no Brasil e nos EUA no que tange à luta pela abolição. Lá, foi bater numa guerra civil em que morreram 630 mil americanos, número nunca igualado depois nas guerras de que os EUA participaram. Nem mesmo na II Grande Guerra. Este número recorde dá bem a medida das firmes convicções do Norte e do Sul sobre dar liberdade à sua população de origem africana. Houve mesmo um movimento a favor de devolvê-la para a África, que não prosperou.

    Nos cem anos posteriores, até 1960, década das lutas pelos direitos civis dos negros, ignorados por cerca de um século, em especial no Sul, era a tônica de um processo de exclusão sistemática. Aos negros, deram um pedaço de terra, uma mula e um arado. Mas havia condições. Vocês estão livres, mas seu filho não estuda na escola dos meus filhos brancos. Mesmo sendo evangélicos, vocês não podem entrar nas igrejas frequentadas por brancos.  Tal separação vale também para hotéis, restaurantes e banheiros. Um processo de segregação humana que cobra seu preço, ainda hoje, no difícil relacionamento entre brancos e negros nos EUA.

    A situação no Brasil, mesmo na colônia e no Império, foi muito diferente. Houve muito mais integração entre as duas raças em que a miscigenação assumiu proporções únicas no mundo. No Brasil, a anomia, a perda das raízes africanas, não prosperou, contrariando o historiador Jacob Gorender. A música, a culinária e as religiões de matriz africana permaneceram vivas. Além disso, a cultura branca recebeu contribuições de origem africana. Tal quadro não respalda a história do racismo estrutural, termo muito mais adequado ao que se passou nos EUA.

    A república, desde seu início, pautou suas decisões renegando as origens da população brasileira miscigenada. Desejava mudar a cara do povo brasileiro, dando-lhe uma tez branca. É como se tivesse vergonha de seu próprio povo. Mas haveria alguma base concreta para um suposto atraso da economia do Império que estivesse nos impedindo de crescer? A resposta é não.

    A comprovação está nas obras de nossos diplomatas-historiadores, ratificando o bom desempenho do Império na economia. E ainda o fato de que o orçamento do Império sob Pedro II decuplicou ao passo que a população apenas dobrou. Impossível, portanto, que nossa renda real per capita tivesse tido um desempenho tão medíocre como propalado pela historiografia econômica consolidada. E equivocada. A pesquisa dos Profs. Bacha, Tombolo & Versiani dá respaldo a nossos diplomatas-historiadores ao concluir, de modo bem fundamentado, que a renda real per capita ao longo do Império cresceu 0,9% ao ano, que era a média mundial e de nossos vizinhos de língua espanhola.

    Não se trata aqui de negar a contribuição de imigrantes de origem europeia ou asiática, como no caso dos japoneses. Deram, sem dúvida, uma contribuição importante para o desenvolvimento do País. Mas, na verdade, a matriz original luso-afro-indígena deu conta do recado, em especial até 1889. Mais grave que o golpe militar em si, foi a destruição do arcabouço político-institucional que permitia o controle dos desmandos do andar de cima via poder moderador.

    As estatísticas nos revelam que a população negra e pobre foi deixada ao Deus-dará. A participação dos pretos caiu de 20 para 10% entre 1890 e 2022. Os autodeclarados brancos, no mesmo período, cresceram de 38 para 43,5%. A vitória da miscigenação ficou com a população parda, que se expandiu de 38 para 45,3%, nos mesmos anos.

    André Rebouças acertou ao prever um futuro sombrio para a população de origem africana, inclusive a pobre, com a chegada da república. Quando constatamos o descaso secular do novo regime em levar a sério a educação pública básica de qualidade, fica patente que o combate à desigualdade foi na direção errada. Mal resolvida até hoje.  

    **Nota: Digite no Google: “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”.  Entrevista minha com mais de 23 mil visualizações.

    **Gastão Reis é economista e escritor.

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