• O piroceno pode ameaçar a espécie humana

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  • 29/set 08:00
    Por Leonardo Boff

    Especialmente a partir de 2023/24 a Terra foi tomada de grandes ondas de calor. Provocaram megaincêndios em muitas partes do mundo. Em 2024, os mais devastadores ocorreram no Brasil, na parte da Amazônia, no Pantanal, no Cerrado, e em vários municípios do Sudeste. A fumaça tornou o ar em São Paulo e em Brasília quase irrespirável. A fumaça se espalhou por quase todo o sul do país.

    Os cientistas tem chamado esta difusão de fogo por quase todo o planeta, de a era do fogo, o piroceno (piros em grego é fogo). Desde tempos imemoriais os seres humanos assumiram o controle direto desta força da natureza. Aprenderam a dominar o fogo. Agora é o fogo que nos domina. Muitas são as causas, como o el Niño, o acúmulo de CO2, metano e dióxido nitroso na atmosfera, as grandes estiagens, as gramíneas altamente inflamáveis, material orgânico no e sub-solo. Só em 2023 foram emitidos na atmosfera 37,5 bilhões de toneladas de CO2 que permanece por lá, cerca de cem anos.

    Desde a era pré-industrial (1850-1900) são lançadas na atmosfera bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, atingindo ao todo mais de dois trilhões de toneladas acumuladas.

    O fogo possui longa história. Pensando na biografia da Terra – há 4,5 bilhões de anos, sabe-se que por 800 milhões de anos a Terra permaneceu como uma incomensurável bolha de fogo, derretida como uma sopa grossa borbulhando de calor. Era um imenso mar de lava em fusão e extremamente quente. Vapores e gases formavam nuvens imensas. Estas por milhões de anos provocavam chuvas torrenciais sem parar, o que ajudou a Terra a se resfriar juntamente com os imensos meteoros de gelo que por séculos torpedearam o planeta. Eles aumentaram consideravelmente o volume de água a ponto de a Terra ser constituída por 70% deste elemento.

    A lava endureceu e fez surgir o primeiro solo com todo tipo de montanhas. O fogo original foi aninhar-se no coração da Terra em forma fluida que se mostra pelas erupções vulcânicas e pelos tremores de terra. Mas continuou como uma energia fundamental na superfície.

    O atual aquecimento global que ultrapassou o projetado 1,5 graus Celsius para 2030, se antecipou, chegando em alguns lugares a 2 e até 3 graus Celsius. ”Estou apavorado”, disse nosso melhor cientista em clima, Carlos Nobre. A causa deste aquecimento constitui a forma como nos últimos séculos o processo produtivista-industrialista tratou a Terra. Era considerada sem nenhum propósito, mero baú de recursos à disposição dos seres humanos. Podemos dizer que se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra arrancando dela tudo o que se podia.

    Ocorre que a partir dos anos 1970 com as pesquisas das ciências da Terra e da vida, Lovelock e Margulis aventaram a hipótese de ser a Terra um super Ente vivo que articula sistemicamente todos os elementos essenciais à vida de tal forma que sempre se mantém viva e produz inumeráveis formas de vida: a biodiversidade. Denominaram-na Gaia, um dos nomes gregos para a Terra vida hoje vastamente acolhida pela comunidade científica.

    Pesquisas sobre o estado da Terra, a partir de 1968 (Clube de Roma), considerando o impacto da atividade humana sobre o meio ambiente e do tipo de desenvolvimento que se havia imposto por quase todo o planeta, concluíram que a Terra estava doente. Impunham-se limites ao crescimento tido como ilimitado sem haver a consciência dos limites do planeta, incapaz de suportar um crescimento ilimitado. Mostra-o a Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot), revelada anualmente pela ONU.

    Entretanto, o sistema produtivista seja na ordem capitalista, seja na antiga socialista, estava e ainda está de tal maneira azeitado que não se permitie parar. As consequências se fizeram sentir cedo mas especialmente a partir dos anos de 1970 até os dias atuais: emissão incontrolada de gases de efeito estufa, degradação dos ecossistemas, erosão da biodiversidade, desertificação crescente, desmatamento de grandes florestas, contaminação dos solos e da água com agentes tóxicos.

    Essa guerra movida pelo processo produtivo (produzir, consumir, descartar) contra Gaia representa uma batalha perdida. O sistema-vida, dada a degradação geral, o aumento de CO2 e metano na atmosfera, o aquecimento tido por irreversível com seus eventos extremos, a perversa desigualdade social despertaram a consciência em muitos: ou mudamos nosso estilo de vida e nossa relação para com a natureza ou podemos não sermos mais queridos pela Mãe Terra.

    Geralmente, quando num ecossistema uma espécie se desenvolve de forma desregulada a ponto de ameaçar as demais, a própria Terra se organiza de tal forma que o limita ou o elimina. Destarte as demais espécies podem subsistir e continuar a co-evoluir no processo global da geogênese. Talvez seja esta a atual situação da espécie humana, na era do antropoceno, apesar de a grande maioria ser ainda inconsciente e negacionista.

    A expressão criada por cientistas, o antropoceno, designaria o ser humano qual meteoro rasante é o que mais ameaça a biosfera. Ao invés de assumir-se como seu cuidador, fez-se seu anjo exterminador. O piroceno seria a forma mais perigosa e destrutiva do antropoceno. O aquecimento global crescente, favorecendo a difusão incontrolada do fogo e as megaqueimadas pode tornar o planeta inabitável. A escassez aguda de água potável, a frustração da produção de alimentos, o clima super-aquecido levaria lentamente a espécie humana à sua extinção. Como tudo o que começa na evolução, se desenvolve, chega ao seu clímax e desaparece. Assim é com as galáxias, as estrelas e os seres vivos. Por que seria diferente com a espécie humana? Irrompemos na Terra quando 99,98% estava já constituído. A Terra não precisou de nossa presença para gestar sua imensa biodiversidade. Sem nós, a vida dos quatrilhões de quatrilhões micro-organismos que trabalham no sub-solo da Terra, levariam avante o projeto da vida. A Terra continuaria a girar ao redor do sol,  sob sua luz benfazeja, mas sem nós.

    Aqueles que ousam dar o salto da fé, diriam que apenas a etapa terrestre do ser humano foi irresponsavelmente concluída. Uma nova iniciaria num outro nível. Depois do tempo vem a eternidade. Nela continuaria a viver numa forma que para nós continua inefável. Mas a vida se perpetuaria.

    **Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu entre outros o livro Cuidar da Terra: pistas para protelar o fim do mundo, Vozes, 2024; Vida para além da morte, Vozes, muitas edições, 2023.

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