• A nossa responsabilidade face à era do piroceno

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  • 22/set 08:00
    Por Leonardo Boff

    Com a irrupção do piroceno (a Terra sob fogo) se mostrando em todos os continentes com queimadas que nos assustam por sua dimensão, surge a pergunta: qual é a nossa responsabilidade face a esta emergência? Essa questão é válida porque grande parte dos incêndios, especialmente, no Brasil, teriam sido causados por seres humanos. Nossa responsabilidade, no entanto, é cuidar e guardar os ecossistemas e o planeta vivo, Gaia, a Mãe Terra. Mas comparecemos como um anjo exterminador do Apocalipse.

    Para superarmos nosso sentimento de desolação e de medo do fim da espécie que resulta da Terra fervendo, nos obrigamos a fazer uma séria reflexão para  compreendermos melhor nossa responsabilidade por tais eventos devastadores.

    A Terra e a natureza não são um relógio que já aparece montado uma vez por todas. Elas derivam de um longuíssimo processo evolutivo e cósmico que já tem 13,7 bilhões de anos. O “relógio” foi sendo montado lentamente, os seres foram aparecendo a partir dos mais simples para os cada vez mais complexos. Todos os fatores que entram na constituição de cada ecossistema com seus seres e organismos possuem sua ancestralidade, sua latência e em seguida a sua emergência. Todos possuem sua história, irreversível, própria do tempo histórico. O princípio cosmogênico atua permanentemente.

    Ilya Prigogine, prêmio Nobel de 1977, mostrou que os sistemas abertos como a Terra, a natureza e o universo põem em xeque o conceito clássico de tempo linear, postulado pela física clássica. O tempo não é mais mero parâmetro do movimento, mas a medida dos desenvolvimentos internos de um mundo em processo permanente de mudança, de passagem do desequilíbrio para patamares mais altos de equilíbrio (cf. Entre o tempo e a eternidade, Companhia das Letras, S. Paulo, 1992, 147ss). É a cosmogênese.

    A natureza se apresenta como um processo de auto-transcendência; ao evoluir, ela se auto-supera criando novas ordens. Opera nela o princípio cosmogênico (a energia criadora) sempre em ação mediante o qual os seres vão surgindo e na medida de sua complexidade vão também ultrapassando a inexorabilidade da entropia, própria dos sistemas fechados. Esta auto-transcendência dos seres em evolução pode apontar para aquilo que as religiões e as tradições espirituais sempre chamaram de Deus, a transcendência absoluta ou aquele futuro que não é mais a “morte térmica”; ao contrário, é a culminância suprema de ordem, de harmonia e de vida (cf. Peacoke, A. R., Criation in the World of Science, Oxford Univ. Press, Oxford, 1979; Pannenberg, W., Toward a Theology of Nature. Essays on Science and Faith, John Knox Press, 1993 29-49).

    Esta constatação mostra quão irreal é a separação rígida entre natureza e história, entre mundo e ser humano, separação que legitimou e consolidou tantos outros dualismos. Todos estão dentro de um único e imenso movimento: a cosmogênese.  Como todos os seres, o ser humano, com sua racionalidade, capacidade de comunicação e de amor resulta também ele desse processo cósmico.

    As energias e todos os elementos que maduraram no interior das grandes estrelas vermelhas, há bilhões de anos, entram em sua constituição. Possuem a mesma ancestralidade que o universo. Vigora uma solidariedade de origem e também de destino com todos os demais seres do universo. Ele não pode ser visto fora do princípio cosmogênico, como um ser errático, enviado à Terra por alguma Divindade criadora. Se aceitarmos essa Divindade devemos dizer que todos são enviados por Ela não apenas o ser humano.

    Esta inclusão do ser humano no conjunto dos seres e como resultado de um processo cosmogênico impede a persistência do antropocentrismo (que concretamente é um androcentrismo, centrado no varão com exclusão da mulher). Este revela uma visão estreita, desgarrada dos demais seres. Afirma que o único sentido da evolução e da existência dos demais consistiria na produção do ser humano, homem e mulher. Lógico, o universo inteiro se fez cúmplice na gestação do ser humano. Mas não apenas dele, mas dos outros seres também. Todos estamos interconectados e dependemos das estrelas. São elas que convertem o hidrogênio em hélio e da combinação de ambos, provém o oxigênio, o carbono, o nitrogênio, o fósforo e o potássio sem os quais não haveria os aminoácidos, nem as proteínas indispensáveis à vida. Sem a radiação estelar liberada neste processo cósmico, milhões de estrelas resfriariam, o sol, possivelmente, nem existiria e sem ele, não haveria vida, nem nós estaríamos aqui escrevendo sobre estas coisas.

    Sem a pre-existência do conjunto dos fatores propícios à vida que foram se elaborando em bilhões de anos e, a partir da vida em geral e como sub-capítulo, a vida humana, jamais surgiria o indivíduo pessoal que somos cada um de nós. Pertencemo-nos mutuamente: os elementos primordiais do universo, as energias que estão ativas desde o big-bang, os demais fatores constituintes do cosmos e nós mesmos como espécie que irrompeu quando 99,98% da Terra estava pronta. A partir disso devemos pensar cosmocentricamente e agir ecocentricamente.

    Importa, pois, deixar para trás como ilusório e arrogante todo antropocentrismo e androcentrismo. Não devemos, entretanto, confundir o antropocentrismo com  princípio andrópico (formulado em 1974 por Brandon Carter, cf. Alonso, J. M., Introducción al principio antrópico, Encuentro Ediciones, Madrid 1989). Por ele se quer dizer o seguinte: somente podemos fazer as reflexões que estamos fazendo por que somos portadores de consciência, sensibilidade de inteligência. Não são as amebas, nem os sabiás ou os cavalos que possuem esta faculdade. Recebemos da evolução tais faculdades para exatamente falar disso tudo e facultar à Terra, através de nós, contemplar seus irmãos, os planetas e as demais estrelas e nós podendo viver e celebrar nossa vida. Daí dizermos que somos Terra que sente, pensa e ama. Para isso que existimos no meio dos demais seres com os quais nos sentimos conectados. Essa singularidade nossa não nos leva a romper com eles, pois os inserimos no todo que vemos.

    Por sermos seres de consciência, de sensibilidade e de inteligência surge um nós, um imperativo ético: cabe a nós cuidar da Mãe Terra, zelar por todas as condições que lhe permitem continuar viva e dar vida.

    Enfrentamos nesse momento talvez o maior desafio de nossa existência sobre a Terra: não permitir que ela se acabe sob o fogo, como aliás aventam as Escrituras cristãs. E se acabará é por nossa irresponsabilidade e falta de cuidado. Inauguramos a era do antropoceno. Quer dizer, nós e não algum meteoro rasante, está ameaçando a vida na Terra. Nesse momento, o ponto culminante, talvez, final do antropoceno que é o piroceno, a era do fogo. O fogo tomou conta da Terra. Até há pouco controlávamos o fogo. Agora é o fogo que nos controla. Ele pode fazer ferver o planeta e torná-lo inabitável.

    Daí se deriva nossa responsabilidade de salvaguardar o planeta para que não sucumba ao inferno do fogo mas garanta sua biocapacidade de nos entregar tudo o que precisamos para viver e sustentar nossa civilização que deverá mudar radicalmente. De nós depende se teremos futuro ou se seremos incinerados pelo fogo.

    **Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu Cuidar da Terra-proteger a vida, Record, 2010; Cuidar da Casa comum, Vozes, 2023; Habitar a Terra, Vozes, 2021.

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