• Impacto da extrema direita na UE deve ser limitado, mas resultado é ‘raio-x’ da agenda global

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  • 10/jun 10:10
    Por Isabel Gomes / Estadão

    As eleições para o Parlamento Europeu, concluídas neste domingo, 9, confirmaram as previsões de um avanço da extrema direita, embora em menor força do que o esperado. O resultado da nova formação do parlamento, que mantém os partidos tradicionais e pró-europeus na maioria, não deve ter um impacto significativo nas decisões do bloco, avaliam especialistas; mas serve como um termômetro para medir mudanças nas concepções de democracia.

    A extrema direita se saiu bem em países como Alemanha, Itália e Áustria. Na França, onde o Reagrupamento Nacional, RN obteve o dobro dos votos da aliança liberal lançada pelo presidente Emmanuel Macron, eleições legislativas antecipadas foram convocadas. Nunca antes as eleições europeias tiveram um impacto tão devastador na política doméstica de um país do bloco.

    Os ganhos, porém, não foram tão surpreendentes como o esperado: o partido espanhol de extrema direita Vox, por exemplo, ficou em terceiro lugar com seis eurodeputados. No vizinho Portugal, a oposição socialista superou por uma estreita margem a coalizão governante de direita moderada, enquanto a extrema direita do Chega ficou com 9,8%, em um distante terceiro lugar. Assim, o centro seguiu como maioria do Parlamento.

    Neste cenário, a esperada influência da extrema direita deve ser amortecida, especialmente levando-se em conta a fragmentação interna deste grupo, com posições divergentes em questões importantes da União Europeia, conforme pontua a doutora em Relações Internacionais pela London School of Economics, Carolina Pavese.

    “Há algumas discordâncias que são importantes ao ponto de inviabilizar uma coalizão completa e que seja uma aliança fechada para todas as questões”, sinaliza Pavese, sugerindo que qualquer coalizão seria pontual e focada em temas específicos.

    Um dos pontos de consenso entre esses grupos, conforme a especialista, é a resistência à migração e às políticas de asilo mais generosas da União Europeia. Ela prevê uma forte pressão desses grupos para restringir as políticas de acolhimento de refugiados e a política migratória, visando torná-las mais severas.

    Ambiente enfraquece, mas Defesa cresce

    O ceticismo em relação às mudanças climáticas também une esses grupos em uma frente conservadora, especialmente contra o orçamento destinado a políticas ambientais e de sustentabilidade, segundo Pavese. Neste cenário, para a especialista, oposição desses grupos ao avanço do Pacto Verde Europeu é esperada.

    O Pacto Verde surgiu como um projeto unificador do interesse político, mas recentemente tem sido alvo de críticas e, desde o ano passado, passou por retrocessos, como ataques à legislação para reduzir os pesticidas ou a restauração de ecossistemas. Indústrias e agricultores europeus estão reclamando da carga regulatória e da burocracia, a ponto de vários países terem sugerido a necessidade de uma pausa regulatória. Ursula von der Leyen, líder do PPE e que busca um novo mandato, já pediu uma “nova fase” do Pacto Verde com foco na “competitividade”.

    Soma-se a isso à possibilidade de enfraquecimento da agenda ambiental a perda significativa de representatividade dos eurodeputados da bancada Verde nas eleições. O Bloco Verde deverá perder cerca de 20 legisladores europeus. Preocupações europeias como migração e guerra na Ucrânia podem estar por trás da queda de preocupação com a pauta ambiental.

    “Talvez o clima seja um item muito maior que migração. Porque neste caso, na resistência a essas mudanças, se nós observarmos não há dissensões tão forte entre os partidos da extrema direita”, diz o professor de relações internacionais da ESPM-SP, Leonardo Trevisan. “A questão climática vai pressionar e vai de algum modo impedir regulamentações maiores de Bruxelas”, acrescenta.

    Se a pauta ambiental perde força, o crescimento no investimento em Defesa dos países europeus pode ser esperado, de acordo com Trevisan. De um lado, há Vladimir Putin, que frequentemente tem ameaçado a Europa e, consequentemente, feito com que a Ucrânia peça por mais ajuda de seus aliados do bloco. De outro, há Donald Trump, que pode ser eleito o próximo presidente dos Estados Unidos e, repetidamente, tem afirmado que aumentará a pressão na Europa para maiores gastos com Defesa.

    Embora o tema de apoio à Ucrânia seja alvo de divisões internas entre os membros do Parlamento – o grupo Identidade e Democracia, por exemplo, se opõe ao aumento de ajuda -, a expectativa é de que a pauta siga com apoio da maioria.

    “Para os Estados Unidos, a questão da guerra da Ucrânia é uma questão de política externa e, de certa forma, geopoliticamente falando, distante. E para a União Europeia, não é só uma questão de política externa, mas de política de vizinhança considerando que a Ucrânia e a Rússia fazem fronteira com vários países da UE”, acrescenta Carolina Pavese.

    Agenda global

    Na França e na Alemanha, que têm eleições regionais marcadas para junho deste ano e para 2025, respectivamente, o resultado das eleições do bloco pode antecipar o que as disputas regionais devem apresentar, argumenta Mendonça, doutor em ciência política e professor de relações internacionais do Ibmec-BH.

    “É muito provável que a direita europeia consiga se projetar. Se isso acontecer a Alemanha e a França serão países bastante impactados com a nova formação política. Esses dois países já são nacionalistas e protecionistas por natureza. Uma vitória da direita fará com que eles se tornem ainda mais insurgentes”, opina.

    Para Pavese, mais importante de como a nova formação do Parlamento Europeu pode reconfigurar a integração o bloco, é o que isso revela sobre as transformações nas políticas domésticas de seus Estados-membros e, por extensão, em outras nações como os Estados Unidos e o Brasil.

    “Essas eleições são mais uma evidência de que há um processo em curso de reconfiguração do que entendemos sobre democracia”, afirma. Ela sugere que estamos presenciando uma mudança substancial, que vai além de eventos sazonais ou externos, indicando uma transformação na maneira como os eleitores vivenciam sua cidadania e exercem seu papel político.

    Nesse sentido, Pavese expressa preocupação com o fato de que esses partidos operam em uma “fronteira delicada” entre o que ainda é considerado parte do jogo democrático e o que viola as práticas democráticas aceitáveis. “Não é só mais uma questão ideológica dentro de uma prática democrática, mas, ao contrário, atuando dentro da democracia, esses partidos têm conseguido redefinir nosso entendimento e a forma como as pessoas valorizam e vivenciam a democracia”, explica.

    Ursula von der Leyen deve se manter

    De acordo com os especialistas, os resultados indicam que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, possa alcançar o desejado segundo mandato, figurando como o principal nome para o posto. Mas para isso, porém, ela deve enfrentar retaliação dentro do seu próprio partido, o Partido Popular Europeu (PPE).

    Isso porque, durante sua campanha eleitoral, Von der Leyen flertou com a extrema direita e abriu as portas para alianças pontuais com o grupo da primeira-ministra italiana de extrema direita, Giorgia Meloni, o ECR.

    “O próprio chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, criticou abertamente essa estratégia. Então ela não encontra apoio nem no seu partido na Alemanha e nem uma um apoio de consenso dentro do PPE com essa aproximação principalmente do grupo da Meloni”, avalia.

    Para conseguir seu segundo mandato, Von der Lyen precisa do apoio dos líderes dos 27 países da UE e do novo Parlamento. Os resultados das eleições legislativas europeias indicam que Von der Leyen conseguirá atingir esse objetivo. A coligação de sociais-democratas, liberais e conservadores que o apoiou em 2019 volta a ter maioria com mais de 400 assentos entre os 720 assentos do Parlamento Europeu.

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