Na ‘Paris ucraniana’, sirenes constantes são lembretes de que a guerra de Putin está por perto
Em Lviv, cidade do oeste da Ucrânia perto da fronteira com a Polônia e chamada de “a Paris ucraniana” por sua intensa vida cultural, os únicos sinais da guerra deflagrada por Vladimir Putin há mais de dois anos são as constantes sirenes de ataques aéreos que ressoam a todo instante, e o trânsito carregado de veículos no centro histórico da cidade em pleno domingo à tarde.
A superlotação de carros é resultado da chegada de quase 2,5 milhões de refugiados ucranianos de regiões próximas no sul e no leste, que fez dobrar a população de Lviv desde fevereiro de 2022.
Ainda assim, o conflito parece distante, a mil quilômetros de Lviv, no novo front que a Rússia abriu no nordeste do país. Mas a vida pacata das ruas cheias de moradores e turistas, com bares e restaurantes lotados, é interrompida pelas constantes sirenes do alarme antiaéreo da cidade.
As sirenes se tornaram mais raras conforme os dois anos de guerra se passaram. Mas agora, com a nova ofensiva em Kharkiv, especialmente a estratégia russa de atacar infraestruturas essenciais da Ucrânia, o alarme voltou a soar com mais frequência para os temidos drones kamikaze que a Rússia adquire do Irã.
Durante a madrugada, duas sirenes avisaram que era melhor se refugiar em um bunker por causa de drones que sobrevoavam a região. Ambos foram abatidos. Para quem não está habituado, o som desperta o instinto de correr e se refugiar. Para os ucranianos de Lviv, porém, depois de dois anos de conflito, o barulho se tornou habitual e só força uma corrida ao abrigo antiaéreo quando os sons das explosões alcançam os ouvidos.
As consequências, porém, aparecem na forma de trauma dos que foram ao front ou perderam alguém, além da eterna incerteza do que esperar do futuro para os milhões de ucranianos que se mudaram para Lviv.
Em todo o Oblast de Lviv, como é chamada a região que abriga a cidade de mesmo nome, a população pré-guerra era de 2,5 milhões de pessoas. O número praticamente dobrou já nos primeiros meses do conflito “Foi um tempo muito curto para uma população crescer tão rápido”, afirmou o governador da região, Maksim Kozitski, em entrevista a uma delegação de jornalistas latino-americanos do qual o Estadão faz parte. “Nossa região se tornou um corredor para pessoas que fugiam da guerra com rumo à Europa”.
Lviv foi palco do maior fluxo de refugiados já registrado em um curto espaço de tempo. Em um ano, mais mais de 5 milhões de ucranianos fugiram do país.
A imagem emblemática do início da guerra foi a de milhares de ucranianos cruzando checkpoints até chegar à estação de trem e finalmente embarcar para a União Europeia. Mais de dois anos depois, o oeste parece alheio à guerra que se desenvolve no Donbass, na Crimeia e, agora, na nova frente de batalha em Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia.
O ápice do fluxo foi nos primeiros três meses de guerra, quando a tomada de Kiev ou até de toda a Ucrânia parecia uma questão de tempo. Conforme o tempo passava, muitos retornaram às suas cidades, especialmente Kiev e Kharkiv. Mas outros ficaram e hoje Lviv abriga milhões de deslocados internos.
Até julho de 2022, o número de pessoas que permaneceram em Lviv foi de 650.000, relata Kozitski, impondo enorme pressão aos serviços e comércios da região, mas principalmente à moradia e acesso à saúde. Com o avanço russo sobre Kharkiv, espera-se que mais pessoas cheguem à cidade, embora em números menores.
Liubov, 66, é uma das deslocadas que hoje vive em um assentamento nos subúrbios de Lviv. Ela e sua filha, que tem o diagnóstico de epilepsia, fugiram da região de Luhansk nos primeiros meses da guerra em 2022 e desde então permanecem ali. “Aqui tenho paz, tenho sossego, não fico escutando os bombardeios o tempo todo”, desabafa a ucraniana que não quis fornecer o sobrenome.
Luhansk foi uma das regiões reivindicadas pela Rússia nos primeiros dias da invasão, juntamente com Donetsk. Ambas estão na região do Donbass. Hoje o local está sob ocupação russa e uma recuperação pela Ucrânia parece improvável. Liubov diz não ter esperanças de retornar à sua casa, porque já não sabe se a encontrará. Mas deseja poder rever os irmãos que se espalharam pelo país. Ela se emociona ao imaginar se encontrar com os irmãos.
“Além disso, lá eu não conseguiria o tratamento correto para a minha filha e aqui, já nos primeiros dias que cheguei, ela foi atendida por um médico especialista”, completa.
“Lviv foi uma das poucas regiões da Ucrânia que continuou recebendo deslocados de regiões consideradas hot-spots”, lembra o governador. “Continuamos recebendo refugiados de Kharkiv e da região de Dnipro. Mas hoje os fluxos são incomparáveis com os de 2022.”
Os mais afetados, segundo o governador, são famílias compostas por mulheres e crianças, já que os homens acima de 25 anos são obrigados a lutar na guerra, além de idosos, pessoas com deficiência e aquelas com traumas psicológicos. “Tivemos que criar instituições para acolhimento psicológico, além de orfanatos e casas de repouso para idosos”, disse.
O outro lado dessa moeda, porém, é a chegada de novos empreendimentos à toda a região de Lviv daqueles que já não viam possibilidade de tocar sua empresa em um área sob ataque. “Hoje temos mais 240 empresas que se deslocaram do leste para o oeste da Ucrânia, cerca de 500 postos de trabalho”, informa Kozitski. A cidade também se tornou uma importante rota de logísticas e escoamento de mercadorias.
Uma vida apesar da guerra
Mas para quem observa a cidade de fora, mal há sinais da guerra. Nem a sirene alertando um possível ataque aéreo que soa em toda a cidade e nos celulares da população afeta a vida cotidiana.
Em um domingo ensolarado na primavera ucraniana, em 19 de maio, ninguém sai das ruas nem dos restaurantes e dos bares – lotados – por causa de um bombardeio na distante Odessa. A vida segue agitada até o toque de recolher à meia noite, quando as conversas nas ruas e as músicas cessam. Na segunda, 20, os alertas, seguidos por uma voz ressoante passando instruções em ucraniano, não afetaram o dia útil.
À reportagem, ucranianos que vivem em Lviv relataram uma aceitação de seu destino. “Se eu tiver que morrer atingido por um míssil, não há o que possa evitar”, disse um deles, justificando a falta de urgência em correr até o abrigo antiaéreo mais próximo.
Se as sirenes não alteram a vida das pessoas, o que de fato assusta os homens ucranianos é a nova regra de recrutamento do governo, iniciada no dia anterior: a exigência de que todos os jovens acima de 18 anos até os 24 atualizem suas informações junto ao Exército em uma espécie de “reserva” – na Ucrânia a idade mínima para servir é 25 – com risco de punições como bloqueio de contas.
Outras lembranças da guerra estão nas estátuas e igrejas históricas fortemente protegidas para o caso de bombardeios. Nas estátuas, fotos dos monumentos cobertos são coladas em fortes estruturas de ferro, apenas para lembrar a população e turistas qual é o símbolo que está ali. Em vidraças antigas, tapumes para evitar que se quebrem.
Em 2023, a Unesco colocou os locais culturais e históricos de Lviv, considerados patrimônios da humanidade, em alerta de perigo para destruição.
No fim, os resquícios mais insuportáveis da guerra, afirma o governador, estão no trauma desenvolvido por todos os ucranianos. “Todo mundo perdeu alguém ou algo”, desabafa, mesmo a população do oeste.
O cemitério aos “heróis” da guerra ganhou um espaço ao lado do antigo cemitério da cidade. O local se tornou um memorial para recordar que, embora a vida continue apesar da guerra, alguém sempre estará enterrando um ente querido.
*A repórter viajou a convite da Fundação Gabriel García Marquez, da Colômbia, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia