• A poluição de pós-verdades

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  • 05/05/2019 13:00

    Trabalhei em um jornal diário com um amigo revisor que se irritava quando, no sábado, na hora de fechar a edição, pegava um texto cheio de erros. Desabafava: 

    — Estou me sentindo um gari nesse texto, tendo que remover tanta sujeira…

    Como eu estava ali de freelancer, tentava amenizar:

    — Você não é um gari, mas um jardineiro, podando galhos para que o jardim fique bonito.

    Na redação, eu era aprendiz: via o trabalho dos diagramadores, dos jornalistas, seguia as orientações do chefe da redação. Não esqueço o dia em que um saudoso amigo me disse: 

    —  Mesmo na pressa para fechar a edição, ao terminar de redigir uma matéria, é preciso penteá-la. Não se pode publicar sem ler antes, se sair algum erro pode comprometer o jornal.

    Pentear o texto, para ele, consistia em manter a linguagem coerente, sem ambiguidades. Até hoje sigo as orientações dele. É preciso ter carinho com o que se escreve.  Trata-se do respeito ao leitor.  A credibilidade do jornal passa pelo compromisso com a verdade. A manipulação das informações é um desserviço à sociedade.

    Concordo com o que escrevera Fernando Pessoa em “Livro do Desassossego”, com o heterônimo de Bernardo Soares: “a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida”.

    Tenho uma amiga professora que, após aposentar-se, passou a trabalhar como revisora, mas não perdeu os hábitos da sala de aula. Não perde a chance de cravar uma vírgula, ainda explica o porquê da colocação. E, quando encontra uma vírgula fora do lugar, também não perdoa; além de excluí-la, explica a inadequação. Ela só lamenta o fato de receber pela lauda revisada, não pela aula dada. Para confortá-la, digo: — esse é o diferencial do seu trabalho.

    Apesar dos programas criados para correção de texto, ainda se faz necessário o trabalho criterioso de um bom revisor.

    Sempre falo que a linguagem é “um cartão de visita”. É responsável pela apresentação da pessoa em qualquer ambiente, tanto no que se refere à forma, quanto ao conteúdo. No livro já citado, Fernando Pessoa escreveu:

    “Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões.”

    Isso, ele afirmou, por ter a consciência de que é preciso “compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei.”

    E, como instrumento, a linguagem tem funções específicas, é flexível, mas exige adequação. O uso irresponsável da informação pode trazer graves problemas. Por isso meço as palavras, mesmo sem me prender a metrificações. Seja em prosa ou em verso, um texto poluído por inverdades torna-se nocivo.

    Eu também não me sinto atraído por texto poluído de adjetivo, soa falso, perde consistência. Vejo o adjetivo como a cereja do bolo. Precisa ser usado no momento certo para ter o realce que merece. E aqui recorro mais uma vez a Pessoa:

    “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a minha língua.”

    A Língua precisa ser tratada com respeito, é a identidade de um povo. O zelo por ela consiste realmente em um ato patriótico. Hoje o discurso político caiu no descrédito, esvaziou-se pelas dissimulações. A mentira foi envernizada, ganhou “status” de “fake news”. Chama-se de “pós-verdade” as projeções fantasiosas para iludir o povo. Esse ato de desqualificar a palavra é um crime praticado por quem lesa a Pátria e por falsos moralistas.

    Em “Instrução e Patriotismo”, Olavo Bilac afirmara: “um povo só começa a perder a sua independência, a sua dignidade, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor pelo idioma natal”.

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