• A banalização da fome

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  • 28/abr 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    A Morte e a Fome são duas velhas conhecidas. Mas, ainda, não consigo conviver com elas pacificamente. O tempo tem me carregado com lições irrequietas. Tenho me corrigido bastante para mudar-me e aceitar resignado o que o destino impõe de forma irreversível. Às vezes, a nossa impotência fica mais evidente pela não aceitação dos fatos como se apresentam. O inadmissível aflora a nossa indignação. Não se trata de revolta, mas de inconformismo. Tento acomodar as minhas vísceras pela irreversibilidade que a realidade impõe, mas não consigo. Fios de fé e esperança se confundem com a utopia que não me permite calar. Mesmo em silêncio, rumino porquês…

    Sei que Francisco de Assis, quem tanto admiro, chamou a Morte de Irmã na plena santificação de quem viveu o despojamento da materialidade na certeza do encontro da eternidade em outra dimensão. Ele, tenho como referência. Contudo, vejo a imensurável distância que nos separa. Tenho dificuldade de aceitar a humanidade como ela se apresenta. Não se trata aqui de uma questão do não entendimento dos problemas relacionados às desigualdades sociais. Mas do inconformismo, tendo em vista os princípios do bem comum, da paz, da felicidade entre os homens. Na minha insignificante concepção, ninguém nasce para morrer de fome.

    Na quinta-feira passada (25/04), uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) trouxe a informação que, em 2023, 4,1% dos domicílios possuíam insegurança alimentar grave; 27,6% dos domicílios foram afetados por algum grau de insegurança alimentar. E que 72,4% dos domicílios possuíam segurança alimentar. Esses dados são melhores do que os apresentados em 2018, porém, não há o que comemorar. Um em cada quatro domicílio apresentou algum grau de insegurança alimentar, ou seja, o pão sobre a mesa não era uma certeza. Nesses lares marcados pela insegurança alimentar, 59,4% eram chefiados por mulheres que heroicamente assumem a luta pela sobrevivência.

    Os dados da pesquisa em relação ao grau de escolaridade também são preocupantes: 52,7% dos domicílios em situação de insegurança alimentar tinham responsáveis com menor nível de instrução, no máximo o Ensino Fundamental completo. 7,9% desses domicílios, os responsáveis tinham Nível Superior. Nos domicílios em insegurança alimentar grave, 67,4% tinham responsáveis sem instrução ou com Ensino Fundamental incompleto ou completo, enquanto em 2,9%, os responsáveis cursaram o Nível Superior. 

    Atravessamos uma pandemia que mexeu com a economia mundial. Os efeitos dela estão expostos nos grandes centros urbanos. São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, não há como andar nas ruas dessas cidades sem se deparar com pessoas famintas deitadas debaixo das marquises. São cenas urbanas banalizadas, já fazem parte do cotidiano. Pessoas como trapos nas calçadas são vistas como algo normal. Há uma letargia. Há pessoas que não reagem mais, nem pedem mais nada. Ficam expostas no chão. E o fluxo segue insensivelmente.

    A indiferença chegou a um estágio em que a exclusão social já é vista com naturalidade. Eis a minha dificuldade: não consigo olhar para um ser humano em tais condições sem me questionar. Homens, mulheres, jovens, crianças, vidas comprometidas pela falta de uma alimentação adequada. Foi Mahatma Gandhi quem disse que “cada dia, a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”

    A miséria é milenar. Excluídos, invisíveis, famintos sempre existiram. A luta pela sobrevivência é primitiva. Há um ciclo que se repete ao longo da história da humanidade: a polarização da sociedade entre pobres e ricos. Nenhum sistema de governo pode ser rotulado de “democrático” quando parte da sua população não tem o mínimo para sobreviver dignamente. Não há democracia perante a fome.

    É um equívoco promover a segregação, a divisão de classe e rotular-se “democrata”. Não há como ignorar uma mão que se estende em busca de alimento. Não há como deixar de se preocupar com a vida subumana em nosso país. É preciso ter noção da realidade para empregar a palavra “Democracia” em sentido pleno, pois não se restringe ao fato da liberdade de expressão. Sem ter o que comer, sem ter condições de trabalho, sem moradia, sem escola, sem hospitais, o povo não se vê em um país democrático, por isso, sente-se exilado na própria pátria.

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