• As criaturas e os criadores

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  • 21/abr 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Inicio a nossa prosa de hoje recorrendo, mais uma vez, à instância máxima da nossa Literatura, o mestre Machado de Assis, que, em 24/03/1873, na crônica intitulada “A Língua” fez a seguinte afirmativa: “Feitas as exceções devidas, não se leem muito os clássicos no Brasil”.

    O tempo passou, criou asas, voou, encurtou distâncias. A comunicação ganhou velocidade, mas a resistência à leitura dos clássicos continua até os nossos dias. O que o Machado afirmara há séculos se constata até hoje. O escritor e humorista estadunidense, crítico do racismo, Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo Mark Tawain, autor de “As Aventuras de Tom Sawyer”, registrara a mesma constatação ao afirmar que “um clássico é algo que todos queriam ter lido, mas ninguém quer ler”.

    Despertar o gosto pela leitura consiste em um processo que tem início na infância. Não depende exclusivamente dos professores de Língua Portuguesa e Literatura. O contato com o livro nasce no lar, a escola amplia-o. É possível exercer um procedimento didático com tal propósito para promover o desenvolvimento cognitivo da criança, do adolescente para assimilação do mundo por meio também dos livros. Posso afirmar com segurança: “quem não leu um livro como “O Menino Maluquinho” do Ziraldo, terá dificuldade de ler “Dom Quixote de La Mancha” de Miguel de Cervantes.

    Com a proliferação das informações pelas redes sociais, o processo reflexivo, as análises mais apuradas dos fatos diminuíram. O imediatismo que predomina em nossos dias tem se colocado como obstáculo no acesso aos clássicos. A busca pelos “resumos” dos livros cresceu bastante, pois é fácil encontrá-los na internet. O “enredo” é apenas um dos elementos de uma narrativa. A cultura do consumo “miojo” chegou à Literatura: muitos querem algo rápido e fácil de ser digerido. Ouço sempre que “textos longos cansam”. O ato de não refletir sobre o que se lê é que tem contribuído muito para o aumento das falcatruas: quantas pessoas já foram ludibriadas por não terem lido, nem interpretado os documentos que assinaram?…

    Na semana que passou, considerei preocupante o fato de um gestor público estadual cogitar a ideia de substituir professores por ferramenta de Inteligência Artificial como ChatGPT, na produção de aulas digitais. A proposta consiste em usar a Inteligência Artificial para criar conteúdo a partir de temas fornecidos pela Secretaria de Educação. Isso evidencia a cultura da doutrinação que se preocupa mais com o conteúdo a ser informado do que com a realidade de quem deve aprender. A vida não é artificial. O conteúdo sem vivência, sem passar pelos sentidos tem assimilação inócua. A fome desartificializa qualquer teoria. A miséria não é abstrata.

    O educando não pode ser visto como um “depósito” de teorias. Paulo Freire já questionara essa “educação bancária”, que coloca o estudante em posição passiva sem interação no processo educacional. Esse mencionado educador, reconhecido internacionalmente, que vem recebendo severas críticas, no livro “Educação como Prática da Liberdade”, no capítulo “A Sociedade Brasileira em Transição”, afirmou: “As relações que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo.”

    O “mundo dos contatos” é diferente do “mundo das relações”. No jogo de interesses econômicos, o outro é apenas um cliente, um consumidor. A caverna digital está nas raízes das síndromes do pânico.

    A Literatura carrega consigo um espaço lúdico que permite libertar a alma pela arte em que as criaturas e os criadores se confundem em uma relação íntima agregadora, porque há interação pela ternura. Temos que admitir que uma personagem criada com perfeição salta da ficção para a realidade e passa a viver conosco descontraidamente. O Ziraldo partiu para outra dimensão da vida, mas o “Menino Maluquinho” continua conosco. Não me preocupo com a mediocridade, porque sei que o tempo apaga os sucessos efêmeros. O conceito de imortalidade é construído na tradução do viver. A Arte que questiona, que não se restringe à contemplação, cria, com seus próprios pés, o caminho para a eternidade, porque encontra espaço na memória do povo que a imortaliza.

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