• A luta por uma sociedade sem manicômios

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  • 06/04/2019 09:45

    Autoritarismo, controle e coerção. Poderiam ser algumas definições de regimes políticos que o Brasil viveu em sua história, mas desta vez estamos falando de saúde. Para um município que chegou a ter duas mil internações em leitos psiquiátricos por ano e conseguiu diminuir em 90% este número, adotar as medidas propostas pela Portaria Nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, do Ministério da Saúde, é considerado um retrocesso para uma rede de atendimento psicossocial que vem sendo mantida há quase dezoito anos, após a reforma psiquiátrica.

        A portaria proposta pelo Ministério da Saúde, de um ponto de vista geral, põe fim à política de substituição do atendimento em hospitais psiquiátricos pelo atendimento aberto e terapêutico que é feito atualmente pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O histórico de internações antes da reforma psiquiátrica foi considerado por muitos médicos e especialistas da área como um regime prisional, em que os pacientes eram afastados dos familiares e inúmeras vezes eram vítimas de maus-tratos e negligência. 

        “Até a entrada da lei nº 10.216/01 não havia controle na porta de entrada desses serviços. Não havia controle do poder público. Em inúmeros casos, os grandes hospitais eram compostos por pessoas que tinham quadros leves e que ficaram internadas por quase 20 anos”, contou o psicólogo Rui Stockinger, autor do livro Reforma Psiquiátrica Brasileira, da editora Vozes. 

        Em Petrópolis, Rui esteve à frente da Coordenadoria Municipal de Saúde Mental durante a implantação da reforma psiquiátrica, e foi um dos responsáveis pela substituição do atendimento no município. Segundo ele, o cenário encontrado aqui na época, não foi diferente do que era visto em grandes hospitais psiquiátricos pelo país. “Pessoas jogadas no chão, sem prontuário, sem roupa. Já presenciei situações de atrocidade humana. Que somente com a rede substitutiva foi possível por fim e fazer o controle dessa porta de entrada dos pacientes nos hospitais psiquiátricos”, disse.

        Em uma dessas vistorias, a Coordenadoria de Saúde Mental chegou a fechar a Clínica Solar Pedras Brancas, em 2009, por inúmeras irregularidades, desde falta de estrutura até o trato com os pacientes.
        “É um retrocesso. A questão não é criar mais leitos, é primeiro fiscalizar os que existem. Existem muitos hospitais sem fiscalização adequada. Aumentar o número de leitos somente em locais onde não há leitos suficientes, mas que isso não seja uma determinação geral”, disse. Para o psicólogo, há o risco da volta de uma política de exclusão. “Há o risco de que esses hospitais passem a ter uma autonomia que não deveriam. Não só clínica, mas sobre a vida plena das pessoas. O controle da liberdade do indivíduo”, completou.

        Para a psicóloga psicanalista, Miriam Mariano, a maior preocupação com a portaria é a volta da institucionalização do tratamento. “A reforma feita pela lei Paulo Delgado (lei nº 10.216/2001) veio em favor de uma sociedade sem manicômios. Porque os manicômios eram depósitos e não lugares de tratamento. Isso era denunciado pelos próprios trabalhadores da saúde mental. Alguns foram até demitidos pelas denúncias. E a lei veio para fazer a tentativa de um resgate da cidadania, direitos e deveres das pessoas portadoras de sofrimento psíquico”, disse.

        A discussão gira em torno da não institucionalização do tratamento. “A desinstitucionalização progressiva foi feita de maneira que os novos portadores de sofrimento psíquico tivessem um tratamento territorializado. Diferente do que acontecia, por exemplo, em Barbacena (Minas Gerais), em que todos os pacientes de cidades vizinhas eram internados no Hospital Colônia. Assim, cada local teria sua própria rede de atendimento”.

        Para a psicóloga, há pouco investimento na saúde mental de um modo geral, não só no município. “Embora o Ministério da Saúde tenha um orçamento grande, a gente sabe que tem interesses. Não que não haja dedicação dos profissionais, as pessoas se empenham, mas tem poucos recursos”, disse.

        Antes da reforma, até a década de 90, apenas 5% da verba era destinada ao atendimento ambulatorial da saúde metal, como explica Rui. “Antes de 2001, era estimada a média de 1.800 a 2 mil internações por ano, mesmo antes de implantar todos os Caps, com o investimento da rede nós conseguimos baixar para uma média de 180 internações ano. Uma redução de 90%”. Apesar de todas essas mudanças, o psicólogo também reconhece que falta investimento para a saúde mental. “É necessário um investimento maior nos Caps, porque com o tempo teve o aumento no número de pessoas e o efetivo de trabalho continua o mesmo de antes”, disse.

        Além da inclusão dos hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e o não incentivo ao seu fechamento, a portaria pretende criar leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Há a preocupação com o investimento nos leitos, já que em um quadro geral, faltam leitos clínicos em grande parte dos hospitais no país. Mas por outro lado, a medida pode garantir que pacientes não sejam encaminhados para leitos de internação em hospitais psiquiátricos sem necessidade. 

        “Os leitos integrais em hospitais clínicos, em casos médios ou brancos, evita que o paciente seja internado por um longo período”, explicou Rui. Após a reforma, foram inaugurados leitos de urgência/emergência psiquiátrica no Hospital Municipal Nelson de Sá Earp (HMNSE). Hoje, o pronto-socorro conta com ainda com dez leitos para internação, em leitos de 72 horas, para casos em que é necessário um maior tempo para estabilização dos pacientes psiquiátricos.

    Investimento em eletrocovulsoterapia divide opiniões

        Em Petrópolis, a eletroconvulsoterapia existiu até a década de 80, depois foi sendo abolido. Trazendo discussões entre vertentes a favor e contra, o tratamento por meio do método, o financiamento de aparelhos de eletroconvulsoterapia também foi proposta na portaria. De acordo com o Ministério da Saúde, o objetivo é oferecer outras abordagens terapêuticas para determinados transtornos mentais graves e refratários. 

        “A eletroconvulsoterapia é considerada indicada para algumas situações muito específicas. Por exemplo, quando a pessoa está em catatonia ou depressão grave com risco de suicídio. Só em condições extremas e não são tão comuns. Mas ainda assim, há uma série de quesitos que devem ser cumpridos. Deve ser feito em centro cirúrgico, com anestesia geral. O médico anestesista deve acompanhar por conta do risco cardíaco. Além de ter alguns prejuízos, como a perda de memória recente”, explicou Miriam. Para a psicóloga, o receio é que o investimento em mais aparelhos faça com que a eletroconvulsoterapia seja usada como uma forma de controle.

    Rede de atendimento psicossocial dispõe de tratamento humanizado e inclusivo

    “O tratamento humanizado é complexo porque vê o sujeito de uma maneira integral. A questão da reforma é que essas pessoas em função do seu diagnóstico clínico feito pelos hospitais, acabam ficando marcadas existencialmente. Um diagnóstico de úlcera, é só um diagnóstico de úlcera. Ele é clínico, não vai afetar a vida familiar, social e laboral da pessoa. No caso da saúde mental, não. Essas pessoas são excluídas do convívio social como se fossem muito perigosas e arriscadas. E esse perigo ficou associado aos transtornos mentais”, explicou Rui.

        Este cenário de exclusão foi vivido por um longo período no país. Com a implantação da RAPS, teve a criação dos CAPS. O município conta com as unidades, o CAPS AD III (Álcool e outras drogas), CAPS Infanto-Juvenil e outros dois CAPS, um no Centro e outro em Itaipava. A rede possui também um ambulatório de Especialidades em Saúde Mental, no Centro. 

        A psicóloga Leandra Iglesias, especialista em prevenção, tratamento e reinserção de usuário problemático de álcool e outras drogas, explica que a medida proposta pelo Ministério da Saúde vai atingir diretamente este público. Leandra é coordenadora do CAPS AD III e acompanha de perto o tratamento psicossocial dos atendidos no centro. 

        A especialista explica que os usuários de álcool e drogas já sofrem a estigmatização durante o tratamento. “Grande parte dos pacientes têm um histórico de transtorno que vem da infância, seja depressão ou ansiedade. E muitas vezes enfrenta no convívio familiar. A internação destes pacientes vai ocasionar seu isolamento social e reforçar a estigmatização”, disse. 

        No atendimento nos CAPS, os pacientes têm acompanhamento clínico e por meio de atividades, acesso ao trabalho e ao lazer, são reinseridos socialmente. Os pacientes são atendidos de acordo com o Projeto Terapêutico Singular, um tratamento específico para cada indivíduo. Eles participam de diversos trabalhos, como oficinas terapêuticas, consultas médicas e orientações individuais ou em grupo. São oferecidas oficinas de artesanato, jardinagem, arte e cultura, entre outras. 

        Além dos CAPS, a Secretaria de Saúde dispõe de três residências terapêuticas, sendo duas femininas e uma masculina, com um total de 24 pacientes, acompanhados por equipe técnica e de apoio. Com um olhar mais de hospitalidade, as residências têm o objetivo de acolher e ressocializar pacientes que ficaram muitos anos em hospitais psiquiátricos. Eles têm a chance de se recolocar socialmente, começam a desenvolver laços sociais, e até ter um reencontro com a família. 

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