• Legitimidade, nossa história e os custos de presidencialismo

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  • 02/mar 08:00
    Por Gastão Reis

    Ainda me recordo de uma pergunta que me foi feita ao tentar entrar, num sábado à tarde, no Departamento de Economia da Universidade da Pensilvânia, em meados de 1978. Um professor, que eu não conhecia, estava do lado de dentro da porta de vidro. Ele notou que eu não conseguia abri-la pelo lado de fora, e me perguntou: “Are you legitimate?” (“Você é legítimo?”). Na verdade, ele queria saber se eu estava regularmente matriculado como aluno no departamento. Disse que sim, e, em seguida, abriu-me a porta.

    Tive um sentimento de estranhamento com o uso da palavra legítimo usada pelo professor. Por que não usar o termo aluno? Talvez, para um americano, esse estranhamento não ocorresse dada a tradição americana em matéria de legitimidade, que se estende ao poder político e à forma como ele é exercido. Aquela dupla concepção de quem manda no governo é o povo, que é quem paga a conta via impostos, e não o inverso. E ainda a visão da democracia de baixo para cima, que se faz sentir na tradição do voto dos colégios eleitorais e na confecção das leis, que parte dos estados para a União.

    Antes que você, leitor e leitora, vá pelo caminho negativo de que nós, no Brasil, não temos essa tradição, eu lhe proponho uma visita à nossa História antes mesmo dos tempos coloniais até hoje. (Juro que não passo de duas laudas!). Estou em vias de retomar meu programa “Dois Minutos com Gastão Reis”, cujo fio condutor deverá ser informar às pessoas o que foi a nossa real História, a que foi escrita com H maiúsculo. Aquela baseada em fatos que hoje não são do conhecimento do grande público. E até mesmo de quem concluiu curso superior face à visão marxista de Gramsci predominante.

    É difícil alguém se situar no mundo sem saber de onde veio, a que povo pertence, que língua fala e que valores são reverenciados por seus pais e antepassados. Eu só me dei conta plenamente dessa problemática por volta dos 40 anos de idade, embora aos 15 anos eu me indagasse o que havia ocorrido com o Brasil em termos de desacertos e tropeços ao longo de sua tumultuada história, aquela dita republicana e escrita com h minúsculo.

    Assim, cabe registrar, antes, que Portugal nasceu na então Lusitânia, e foi moldado por uma mistura de povos guerreiros por longos períodos históricos: 600 anos pela ocupação romana (300 A.C. a 300 D.C.); 200 anos pela dos visigodos, povo de origem germânica (300 a 500 D.C.) e quase 800 anos pelos mouros (árabes, de 500 a 1249 D.C.) A despeito da batalha de Ourique, em 1139 D.C., vencida por Dom Afonso I, que se nomeou Rex Portucalensis, rei dos portugueses, a vitória e expulsão definitiva dos árabes só se deu em 1249.

    Mas a consolidação da independência de Portugal, sempre cobiçado pela Espanha, só se efetivou com a presença de Dom Nuno Álvares, o Condestável. Ele comandou três grandes batalhas, em desvantagem de 3 e até 5 espanhóis contra um lusitano, e se saiu vencedor. Foram elas: Atoleiros, em 03/04/1384; Aljubarrota, em 14/08/1385; e Valverde, em 14/10/1385, em que Dom Nuno, sempre em grande desvantagem, se saiu vencedor. Nesta última, quase perdida, um escudeiro o encontra rezando entre dois rochedos, e lhe diz; “Nada de orações que morremos todos”. Ao que ele responde, calmamente: “Amigo, ainda não é hora. Aguardai um pouco, e acabarei de rezar”. Sai dali, dizem, com o rosto iluminado, e consegue vencer a batalha milagrosamente.

    Em suma, a história de Portugal foi marcada por atos heroicos num tempo em que a lei do mais forte comandava o espetáculo. Foi capaz de assegurar território e língua próprios. E depois saiu pelo mundo para construir o primeiro império global, antes mesmo do inglês e do francês. Trata-se, portanto, de um grande povo que Camões cantou em “Os Lusíadas”.  Atrocidades lamentáveis existiram, e eram cometidas por todos, europeus e régulos africanos. Estes em frequentes guerras tribais, em que os vencedores sempre escravizavam os vencidos. Este panorama atroz perdurou por muitos séculos até o XIX.

    No período colonial, o Brasil passou por diversos ciclos econômicos. Em fins do século XVIII, o desenvolvimento da colônia brasileira foi bastante significativo, acompanhando de perto o dos EUA. As grandes fortunas daqui se ombreavam e até superavam as da metrópole. No período do Império, novas pesquisas comprovam que o País acompanhou o resto do mundo, cuja renda real per capita crescia cerca de 1% ao ano, exceto no caso americano, que foi sem paralelo. Eu me refiro, em especial, à pesquisa dos Professores Bacha, Tombolo & Versiani, que questiona a suposta estagnação secular da renda real per capita ao longo do Império, comprovando que ela cresceu  0,9% ao ano, o que o mundo de então crescia.

    Ao longo do período colonial e do Império, o Brasil foi basicamente um país de tradição parlamentarista. Na colônia, as vilas faziam eleições regulares a cada três anos de que participavam os chamados homens bons e livres. O prefeito era sempre o vereador mais votado, prática que Petrópolis manteve até 1915, quando foi eleito como prefeito o famoso Oswaldo Cruz pelo voto direto.

    Numa viagem que fiz à cidade do Porto, em Portugal, visitei a Câmara Municipal, que é a sede do poder executivo, exercido pelos vereadores, que são também secretários municipais, e só dedicam um dia por semana para tratar de assuntos legislativos. Tradição parlamentarista em que os poderes se intercomunicam, sem prejuízo da devida fiscalização. E é bem mais econômico do que o presidencialismo adotado no Brasil, desde 1889, em que o prefeito e seus secretários são outras pessoas, e não desempenham a dupla função dos vereadores como em Portugal.

    Foi então que me dei conta da economia brutal de recursos públicos que haveria se tivéssemos mantido a tradição parlamentarista portuguesa, que lá está vigente até hoje. E que foi nossa até 1889. Sabemos que no regime parlamentarista é comum o voto distrital puro, que obriga os parlamentares (vereadores, deputados estaduais e federais) a prestar contas de seus atos em seus distritos eleitorais todo mês. E ainda estão sujeitos ao recall (revogação de mandatos com substituição por outro representante). Mais ainda: o custo de uma campanha eleitoral é menos de 1/5 do que ocorre no nosso sistema proporcional. Deu para perceber, caro leitor e leitora, de como pagamos caro para manter este perdulário sistema presidencialista vigente?   

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