O golpe que não houve e o outro
A história republicana brasileira é povoada por golpes de todo tipo. O pior deles foi o de 15 de Novembro de 1889, que proclamou a dita república. Dita porque foi arquitetada por um pequeno grupo de militares positivistas, sem apoio popular, na base de uma mentira em que o mal. Deodoro acreditou: Silveira Martins, seu arqui-inimigo, vencedor na disputa do coração da bela viúva Adelaide, iria ser o novo Primeiro-Ministro. Indicação que não houve, mas que levou Deodoro a dar sinal verde para os golpistas republicanos.
Temos uma vasta coleção de golpes, além do clássico oriundo de rebeliões e indisciplina militares. O jornal CARA & COROA, órgão do MPM – Movimento Parlamentarista Monárquico, em seu número 8, de novembro de 1991, fez um levantamento do triste legado do regime republicano desde sua implantação. Foram 6 constituições diferentes; 6 dissoluções do congresso; intervenções nos sindicatos; 9 governos autoritários; 17 atos institucionais; 4 presidentes depostos; 12 estados de sítio; 19 rebeliões militares; 3 presidentes impedidos de tomar posse; censuras à imprensa; um sem-número de cassações e exílios; 2 renúncias presidenciais; 2 longos períodos ditatoriais; e intervenções nas universidades.
É um quadro de instabilidade intrínseca do regime republicano desde seu início. Ao compararmos o longo período de estabilidade que o Império nos legou, com raríssimos solavancos, com o histórico da república, vamos bater na questão das falhas político-institucionais que nos perseguem desde 1889. E aqui não vai saudosismo monárquico algum. A diferença está na qualidade das instituições que tivemos ao longo do século XIX, que se perdeu nos séculos XX e XXI.
Dentro das diversas modalidades de golpe, o Brasil foi incrivelmente criativo. Tivemos vários perpetrados por grupos militares, mas houve também golpes de cunho parlamentar, e até os jurídicos, em que juristas e ministros de tribunais superiores se prestaram a implantar a ditadura do judiciário, de que nos falava Ruy Barbosa como a pior delas. São aquelas situações em que a Lei vira arma de conveniência dos poderosos de plantão, e se sobrepõe aos legítimos direitos do cidadão para oprimi-lo. Esta é a situação inaceitável com que estamos convivendo hoje.
Tal constatação parece ter levado o conhecido colunista Merval Pereira a publicar um longo artigo, em 10/02/2024, em que o título é uma indagação: “As instituições estão funcionando?”. Mais revelador ainda é o subtítulo: “Não vivemos em uma democracia genuína, mas sim em um simulacro de sistema de governo que serve aos que estão no comando no momento. No Brasil, cada um dos poderes trata de suas prioridades, colocando-as acima das questões nacionais”. Se ponderarmos pela crescente desigualdade social observada, é como se Merval estivesse assinando um atestado de óbito do regime republicano. No primeiro parágrafo, ele só se equivoca em falar nas crises institucionais “nos últimos anos”. Como vimos, elas vêm desde 1889.
Mas, de fato, nos últimos tempos, sob a batuta ditatorial do ministro Alexandre de Moraes, inventamos uma nova modalidade de golpe na linha do indivíduo que pretendia matar alguém, mas nunca levou a termo seu intento. Ninguém precisa fazer curso de Direito para saber que não há como punir algo que não aconteceu. Seria preciso inventar o crime de intenção, na verdade, uma variante do crime de pensamento. Um despropósito que nenhum jurista teve a petulância de defender por contrariar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da qual o Brasil é signatário.
São afrontosas as últimas medidas decretadas pelo ministro Alexandre de Moraes ao autorizar a Polícia Federal a realizar atos de busca e apreensão na residência do ex-presidente Bolsonaro e alguns de seus ex-ministros da área militar, Braga Neto e gal. Heleno. O intuito é levantar provas que configurariam a intenção de dar um golpe de Estado com apoio das Forças Armadas. Mais: o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, foi preso e teve seu domicílio vistoriado em busca de provas. Foi aventada inclusive a cassação do PL como partido político por também estar, supostamente, envolvido na trama. Obviamente, em relação ao PT, cujos dirigentes participaram, ou autorizaram, rombos bilionários na Petrobrás e no BNDES, nenhuma providência é tomada.
O primeiro absurdo é tentar configurar crime de pensamento. A suposta intenção de golpe não se materializou. Além disso, é sabido que Bolsonaro dificilmente teria apoio das Forças Armadas, em boa medida, por seu histórico disciplinar um tanto controverso. Uma característica cada vez menos apreciada pelos atuais militares. E, de fato, não houve golpe.
Mas a intenção por trás do que vem sendo autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes, com a conivência dos demais membros do STF, é tentar desestruturar a oposição em nome da democracia. A definição clássica da real democracia é aquela em que o povo manda no governo, e não o oposto, como vem ocorrendo no Brasil. Há um processo antidemocrático semelhante ao que aconteceu na Venezuela e na Nicarágua, em que a democracia foi usada para pôr fim às práticas democráticas. E tudo isso sem que o senado tome as óbvias e devidas providências.
O lado perverso desse processo à revelia da Lei é usar a desculpa de um suposto golpe, enquanto atentados sistemáticos à democracia vêm sendo praticados, inclusive contra cidadãos rotulados de golpistas, sem o devido processo legal. Ou seja, o Estado de Direito vem sendo golpeado em evidente desrespeito à constituição vigente.
É manifesto o medo de Lula e dos ministros do STF em aparecer em público por saberem dos apupos de que serão alvo. Perderam a legitimidade ao se servirem da Lei arbitrariamente para se protegerem. Mas, aos poucos, o ronco das ruas vem se alastrando pelo País. Uma rápida visita às redes sociais deixa claro a direção do que vai acontecer no futuro próximo.
Amedrontar o povo não funciona a médio e longo prazos. A rigor, nesses casos, o tiro acaba saindo pela culatra. Quem viver verá.