• ‘Ler é fundamental. A posse do livro, não’; conheça a biblioteca minimalista de Leandro Karnal

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 14/12/2023 07:02
    Por Maria Fernanda Rodrigues / Estadão

    É muito impressionante entrar pela primeira vez na biblioteca de Leandro Karnal.

    Historiador, professor, palestrante requisitado, membro da Academia Paulista de Letras, escritor (ele está lançando Preconceito: Uma História) e colunista do Estadão, ele sempre foi um leitor voraz – e é fácil imaginar a sala de seu espaçoso apartamento nos Jardins toda tomada por livros. Ou pensar que ao menos um dos cômodos guarda, em prateleiras do chão até o teto, em um ambiente com luz acolhedora e uma confortável poltrona de leitura, seus tesouros literários, os livros que ele já leu e os que ainda quer ler.

    Mas quase não há livros na casa de Karnal.

    Não há porque ele não acredita mais que a posse do livro signifique alguma coisa importante – já acreditou, e sua casa, tempos atrás, poderia ser confundida com um sebo, com livros até embaixo da cama e no banheiro, e com nada menos do que 17 dicionários da língua portuguesa e 30 diferentes bíblias. Também porque ele tem rinite alérgica. E porque cruzaram por seu caminho pessoas e projetos que fariam um novo – e melhor – uso daquela sua “biblioteca morta” (morta, porém renovada diariamente com a chegada das remessas das editoras que esperam, um dia, ver suas obras em algum texto dele).

    “Nos últimos 15 anos, estou desapegado da posse do livro e, curiosamente, estou lendo mais do que nunca”, contou ao Estadão numa manhã de final de novembro, quando recebeu a reportagem para uma visita à sua – agora – diminuta biblioteca.

    Os livros de História da América, acumulados desde a pós-graduação e tão importantes para a sua formação e para seu dia a dia como professor, foram para seu substituto na Unicamp, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (com quem assina seu novo livro sobre preconceito; leia abaixo), quando ele pediu exoneração. Karnal sabia que não voltaria a produzir nesta área.

    O resto, algo como 3 mil exemplares de filosofia à ficção passando pelas tiras de Mafalda, ele doou para um presídio em Pinheiros, por causa do projeto de remição de pena pela leitura, e também para os meninos e meninas da Fundação Casa.

    “O único livro, na minha vida, que eu doei e me arrependi – e doei porque achei que seria muito útil no presídio -, foi o Dicionário Houaiss. Era aquela primeira versão encadernada e costurada à mão, acho que feita na Espanha. Eu era estudante quando comprei e foi caríssimo. Tem online, mas às vezes sinto vontade de folheá-lo rapidamente”. Ele, que disse não escrever um parágrafo sequer sem consultar um dicionário, deve comprar uma nova edição do Houaiss, embora ainda tenha outros três dicionários (dos 17 que já teve) em casa. E como escreve muito sobre religiões, guardou 10 bíblias.

    E o que restou? O que forma, hoje, a biblioteca de Leandro Karnal? O essencial, os grandes clássicos, aquilo que está sendo usado para o trabalho naquele momento, livros afetivos, a herança de seu pai.

    Visita à biblioteca de Karnal

    Começamos esta visita pela sala, onde está justamente esta “estante afetiva”. Quando o historiador senta ao piano, um imponente piano de cauda Yamaha que se destaca no ambiente, é ela que está em seu horizonte.

    Em quatro prateleiras, algo como 122 volumes dividem o espaço com sua memorabilia. Obras de arte, objetos mexicanos do tempo de seu doutorado, um cadeado budista do Butão que ele achou lindo e comprou em um camelô na rua, enfeitinhos de Natal, um Buda de cada país da África e da Ásia que ele visitou – e um Buda de ouro de 2.300 anos -, uma máscara africana no século 19. Todo o Shakespeare, as poesias de Machado de Assis, cartas e contos de Clarice Lispector, o mais importante de Umberto Eco, Kafka, Gógol, a biografia de Beethoven e de Caravaggio, Eneida, Ilíada, A Divina Comédia – uma, das várias que veríamos na casa.

    O primeiro livro que Karnal tira da estante para mostrar deve ser sua maior relíquia e remonta ao século 16: uma coleção de sermões de São João Crisóstomo, de 1571, com capa de madeira e anotações manuscritas em latim feitas, ele imagina, por algum monge. Foi presente de uma amiga que arrematou os dois volumes em um leilão. “Quando eu quis restaurar as capas, porque nesses últimos cinco séculos elas sofreram um pouco, o arquiteto me disse para deixar assim. Ele foi livre de pragas e só o que preciso fazer é deixá-los arejados.”

    O segundo livro que ele mostra era de seu pai, que nasceu em 1934 e morreu em 2010, foi professor de latim e advogado e tinha uma biblioteca muito grande – dividida, depois, “intuitivamente”, entre os filhos. Trata-se de A Divina Comédia, de 1879.

    Na sequência, um livro de orações – o Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria, de 1740. Dentro, marcando as páginas, um santinho que pertenceu ao seu pai, um católico devoto.

    Outros do pai: uma coleção da vida dos santos, de 1621, consultada por Karnal inúmeras vezes sem dó de danificá-la. “Um livro é para ser usado”, ele disse. “Mas hoje, se vou usar um livro de mais de 100 anos, preciso usar máscara porque meia hora depois eu começo a pingar em cima dele”, diz. E também a obra completa de Olavo Bilac e a Bíblia Vulgata, “que ele lia dia e noite”.

    O pai não escrevia seu nome nos exemplares. Karnal carimbou todos eles com seu próprio nome, mas diz que não faz mais isso. “Eu já tive ex-libris, mas hoje tenho até um escrúpulo com isso. Alguns tinham até endereço para devolução.”

    Há ainda, ali, uma coleção lançada pela Abril Cultural na década de 1970, de mitologia, e um dicionário sobre o tema, que vieram de sua casa da infância. “E outros que são meus, mas que reproduzem um pouco o que ele gostava e lia, como a Ilíada.”

    E então chegamos aos livros que marcaram a sua vida, como O Outono da Idade Média, que o impressionou em seus tempos de USP. “Um livro lindo, feito no início do século 20, uma obra extraordinária”, definiu. A edição que ele tem hoje é a da Cosac Naify, de 2010. “Essa edição maravilhosa deve ter sido um dos motivos para a editora ter ido à falência”, comentou.

    O Nome da Rosa, presente de uma amiga nos anos 1980, está na biblioteca do escritório, mas Karnal expõe, ali na sala, o box da Record que reúne este que é o livro mais famoso de Umberto Eco, O Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault. Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, O Nariz, de Gógol, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Na Colônia Penal, de Kafka, quase todos em edições caprichadas da Antofágica, também podem ser vistos na sala do escritor ao lado de Clarice Lispector (1920-1977), possivelmente a mais contemporânea entre os autores.

    “Eu diria que essa é a minha biblioteca visual, onde o livro é um pouco memória e um pouco obra de arte”, resume o historiador.

    A segunda biblioteca

    Da sala, seguimos alguns poucos passos até o claro e arejado escritório de Karnal. Há uma bancada em L. Uma das partes é uma espécie de entreposto com uma seleção rigorosa dos livros que ele recebe das editoras e que ainda vai examinar – a maioria fica no outro apartamento que ele tem no mesmo prédio, junto com o que será doado. Nela, ficam também os livros com os quais ele está trabalhando no momento e o que está lendo. Naquele dia, era a biografia de Elon Musk que estava em leitura.

    A bancada continua e se torna a mesa de trabalho de Karnal, com uma grande tela de computador. Acima, duas prateleiras que ocupam toda a extensão de uma das paredes e, na parede ao lado, uma singela estante de livros. “Aqui está mais uma parte do que sobrou do que um dia já foi muito.”

    Há outros livros afetivos ali, em meio a fotos de seus pais, um relógio comprado pela avó em 1935, dezenas de lápis grafite e sua coleção de bíblias – também o que sobrou. É possível ver ainda as obras em discussão no clube de leitura que divide com Gabriela Prioli, os livros dados por amigos e os que escreveu, outros clássicos, como O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, cuja releitura sempre causa impacto nele, e obras inusitadas que o tocaram, como A Elegância do Ouriço, best-seller de Muriel Barbery. Sem contar os que revelam seus interesses ecléticos – por exemplo: ele adora plantas e tem livros sobre o tema. “Meu plano c de carreira é ser jardineiro”, brinca.

    É possível encontrar livros de autores brasileiros contemporâneos por ali, como Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, e Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão. E dois títulos de Rodrigo Lacerda, também um grande leitor de Shakespeare, vizinho e frequentador da casa de Karnal – O Fazedor de Velhos e Vista do Rio.

    Mas é sobre um terceiro livro de Lacerda que o historiador comenta. “Tem uma cena em Reserva Natural, do tamanduá atacando um cupinzeiro, que é uma das descrições mais fortes da língua portuguesa. Ela me parece com a cena da tempestade do furacão que José de Alencar coloca no romance O Gaúcho ou alguns trechos de Euclides da Cunha ao descrever o relevo da Bahia. São descrições muito talentosas e eu acho o Rodrigo grande escritor (Karnal já escreveu sobre esta obra no Estadão; leia aqui).

    Ali, há os livros lidos, obras mais atuais que em breve poderão descer quatro andares para a caixa de doação e o títulos ainda chilincados – manter o livro no plástico em que vieram da gráfica é, para ele, um marcador do que ainda não foi lido (e uma proteção contra a poeira).

    Mais literatura contemporânea

    Leandro Karnal fez parte do júri do Prêmio Jabuti e leu mais de 100 romances de autores estreantes. Ele conta que se impressionou com a qualidade da nova literatura brasileira. Recentemente ele também se encantou com Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, como já tinha se encantado, antes, com o português Valter Hugo Mãe. Dele, começou lendo A Máquina de Fazer Espanhóis. Achou extraordinário O Filho de Mil Homens. Fez o prefácio de A Desumanização. Recebeu o autor em sua casa.

    No Brasil de hoje, Itamar é, na opinião de Karnal, o exemplo de alguém que escreve bem e que reinventa a língua. Diferente, em sua opinião, do que tem saído dos cursos de escrita criativa: um texto padrão. “O problema desses cursos é que nem sempre eles conseguem ensinar a voz para uma pessoa. E isso não significa domínio gramatical. Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, é um bom exemplo de falta de domínio gramatical e de uma voz muito original. Ela conseguiu fazer uma voz sem domínio pleno da norma culta.”

    Ele fala também de Clarice Lispector, e a inclui no rol dos mestres da língua: “Quando li pela primeira vez A Paixão Segundo G. H., pensei: o que é isso? Como uma pessoa pode estar num apartamento onde não acontece nada e você fica preso. Repito até a frase inicial do romance: estou tentando entender. Estou tentando entender até hoje.”

    Biblioteca invisível

    Quase não há livros na casa de Karnal, mas ele é capaz de comentar, de cabeça, leituras de ontem e de 40 anos atrás. E suas leituras secretas – ou, as menos eruditas. Como Agatha Christie, que leu na adolescência, apesar de o pai torcer o nariz, e ainda lê, ou os best-sellers de Sidney Sheldon, também muito presentes em uma momento de seu passado, mas que ficaram para trás.

    Essas obras não estão na estante, mas seguem, como milhares de outras (incluindo os audibooks que ele começou a ouvir enquanto faz esteira em casa ou pedala no parque), nesta biblioteca mental que começou a ser construída em São Leopoldo (RS), quando Leandro Karnal era apenas uma criança. Uma biblioteca que só cresce – para dentro, para longe da vista.

    “Esses livros estão em mim, mas a maioria não está mais comigo”, diz. “Ler é fundamental. A posse do livro, não. Ter um livro que outros podem ler e guardar para você é uma ideia mercantilista de cultura, como se o importante fosse entesourar. O livro-tesouro, hoje, está ultrapassado. O livro tem que circular.”

    Sobre as doações, portanto, diz que não faz sentido deixar um livro lido, que mudou sua forma de pensar sobre determinado assunto – o direito, por exemplo, ou o preconceito – mofar na estante. Nem aquele que já foi útil para seu trabalho, mas ao qual não pretende voltar. “Não quero, com isso, dizer que o livro seja ruim, mas se for para eu reler alguma coisa vai ser um clássico, A Divina Comédia, Dom Quixote, Shakespeare. Esse livro me incomoda na estante porque ele pode ser semente para outras pessoas”, explica, reafirmando, mais uma vez, seu contentamento em poder fazer esses livros chegarem a presidiários.

    “A ideia de ter o livro junto a mim não me seduz mais. E imaginar que todos os livros que eu doei possam ter sido lidos por outras pessoas me alegra mais do que todo o resto. Não estou mais naquela fase Tio Patinhas”, conclui – mas diz que de tudo o que ainda tem nunca vai se desfazer da biblioteca herdada do pai nem dos seus Shakespeares.

    Novo livro

    Leandro Karnal escreveu Preconceito: Uma História (Companhia das Letras; 400 págs.; R$ 69,90; R$ 29,90 0 e-book) com Luiz Estevam durante a pandemia. Havia a ideia de que o preconceito estava aumentando nos últimos anos – um preconceito, ele diz, que sempre existiu, mas do qual, talvez, as pessoas se envergonhassem. Os dois historiadores se propuseram a pensar a respeito e esse processo durou três anos. Dos mais de 100 tipos de preconceito que identificaram, eles elegeram cinco para se aprofundar nas 400 páginas da obra que chegou recentemente às livrarias – misoginia, “que é o preconceito fundante”, LGBTfobia, xenofobia, racismo e capacitismo.

    Trata-se de uma profunda investigação sobre a análise genética do preconceito, ou seja, sua origem, como ele se constrói, e uma das conclusões é a ideia que isso pode ser desconstruído. “Como historiadores, partimos do pressuposto que toda convenção cultural, prática discriminatória, violência, discursos são produções humanas. E sendo produções humanas podem ser desconstruídas.”

    Houve avanços, ele diz – embora ressalte que as coisas não são fixas e imutáveis. “Conseguimos produzir mudanças. O mundo, hoje, é muito racista, mas estamos alguns centímetros à frente do que já estivemos há 50 anos.” Ele conclui: “Sou otimista, e talvez meu otimismo seja falso e nasça do fato de eu ser um homem branco. Mas eu sou mais otimista do que há 50 anos”.

    Últimas