• Ano da mudança ou da marmota?

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  • 15/01/2019 12:30

    Aproxima-se da ilusão do que parece mudar, mas sempre retorna inexoravelmente, quem assiste a comédia dramática estadunidense O Feitiço do Tempo (1993), dirigido por Harold Ramis e protagonizado por Bill Murray. Na trama, Phill Connors é um homem do tempo de um programa televisivo, enviado pelo quarto ano consecutivo a uma pequena cidade da Pensilvânia, chamada Punxsutawney, a fim de cobrir o Dia da Marmota. Segundo as crenças locais, para saber se haveria ou não mais seis semanas de inverno, era preciso testemunhar uma marmota olhar a própria sombra. Sucede que, sem razão muito clara, Phill fica preso em uma espécie de “eterno retorno” nietzschiano, em que acorda sempre no mesmo instante do mesmo dia para fazer a mesma cobertura jornalística, sem a possibilidade do amanhã.

    Ora, há quem sinta e interprete este ano que se inicia não como possibilidade de mudança, mas como amarga repetição de 1964, ou seja, como uma espécie de Ano da Marmota, que tragicamente regressa. Assim, emerge contra o novo governo uma inescrupulosa “resistência”, cujos representantes, tal como prosélitos do fatalismo pessimista, felicitam-se desesperada e sarcasticamente com votos de “Feliz 1964!” ou “Que regressem os anos de chumbo!”. Para os eleitores e apoiadores do governo Bolsonaro, entretanto, 2019 não é ano para ser entreouvido por meio da “compulsão de repetição”. Tanto os bolsonaristas mais fanáticos quanto os tímidos simpatizantes do novo governo acolhem 2019 com esperança, por meio do sentido de mudança; acreditam naquilo que o novo Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, chamou de “ineditismo dos tempos que começam frente ao ciclo lulo-petista”.

    A esquerda nacional tornou-se convalescente. Mas isto não é de todo um mal. Pois, segundo o filósofo alemão Martin Heidegger, convalescer significa retornar ao lar, ou “nostalgia” da pátria. Portanto, pode ser que a referida “compulsão de repetição” da “resistência” seja, de fato, um sintoma da sua convalescênça, ou seja, pode ser que a sensação induzida de repetição do “ano monstruoso” seja até necessária, do ponto de vista da estratégia revolucionária, para que haja um “regresso às fontes”, ou mesmo um renascimento e revisão das forças progressistas no Brasil, sob uma nova edição mais aguerrida. Para tal, contudo, será preciso a esquerda olhar a própria sombra por meio da autocrítica.

    Aquilo que o antropólogo cultural Clifford Geertz escreveu sobre os golpes políticos, no livro The Interpretation of Cultures (1973), pode ajudar a explicar a atual conjuntura política nacional: “Submetem [os golpes] a vida política a uma espécie de pânico abafado que associamos, de forma muito geral, com um trauma psíquico: uma obsessão com indícios, a maior parte ilusórios, de que ‘vai acontecer novamente’, um aperfeiçoamento de precauções elaboradas, a maioria delas simbólicas, para evitar que aconteça, e a convicção irremovível, quase sempre visceral, de que acontecerá de qualquer forma – tudo isso repousando, talvez, no desejo meio reconhecido de que aconteça de uma vez para que acabe também de uma vez”. 

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