Em ensaios sobre canções, Dylan reflete sobre a condição humana
O livro A Filosofia da Música Moderna conterá as reflexões de Bob Dylan sobre 66 músicas, desde London Calling, de The Clash, até Don’t Let Me Be Misunderstood, apresentada por artistas como a cantora e pianista Nina Simone.
Há algumas ausências importantes nos ensaios, como Beatles ou Rolling Stones, da mesma forma que canções em espanhol ou francês ficaram de fora da seleção. Ainda assim, o presidente da editora Simon & Schuster, Jonathan Karp, definiu o trabalho como “uma celebração internacional de canções dos melhores artistas de nosso tempo”. A única canção em outro idioma que não o inglês é a italiana Volare, de Domenico Modugno.
“Este livro só poderia ter sido escrito por Bob Dylan. Sua voz e obra únicas expressam seu profundo apreço e compreensão pelas canções, pelas pessoas que as dão vida e pelo que as canções significam para todos nós”, escreveu Karp no ano passado, quando anunciou a publicação do livro, que estará disponível no Brasil no dia 24 de novembro, em edição da Companhia das Letras, mesma editora responsável pela publicação de outras obras do autor, como Bob Dylan: Letras (1975-2020), em tradução de Caetano W. Galindo.
MEDITAÇÕES
Segundo Karp, o livro fala naturalmente de música, mas vai além. Os textos, afirma, “são realmente meditações e reflexões sobre a condição humana”. Escrevendo sobre Strangers in the Night, por exemplo, tornada famosa por Frank Sinatra, Dylan descreve como a canção evoca “o lobo solitário, o pária, o estranho, a coruja da noite”.
O livro inclui ainda ensaios de Dylan sobre Without a Song, também cantada por Frank Sinatra; Tutti Frutti, de Little Richard; You Don’t Know Me, interpretada por Ray Charles; Black Magic Woman, de Carlos Santana; ou Gypsies, de Cher.
SERVIÇO:
A Filosofia da Música Moderna
Bob Dylan
Trad.: Bruna Beber e Julia Debasse
Cia. das Letras, 352 págs.; R$ 249,90
‘My Generation’
A canção do The Who, composta por Pete Townshend, foi lançada originalmente como single (Decca, 1965)
“Essa é uma canção que não favorece ninguém e põe em xeque todas as coisas.
Nessa canção, as pessoas tentam dar uns tapas na sua cara e te difamar. Elas são rudes e te agridem com golpes baixos. Não vão com a sua cara porque você se esforça e arrisca tudo para chegar a um determinado fim. Você põe alma e coração em tudo que faz, além de investir tudo o que tem, porque tem disposição, força e propósito. Por ser tão inspirado, as pessoas fazem qualquer coisa para que você tenha azar; elas são alérgicas a você e estão ressentidas. Sua presença por si só as repele. Elas te olham com frieza e já estão fartas – há 1 milhão de pessoas como você no mundo, se multiplicando a cada dia.
Você faz parte de um clube seleto e está se promovendo. Tagarela sobre as pessoas da sua faixa etária, da qual é um membro do alto escalão. Você não pode esconder seu orgulho, e age com esnobismo e vaidade. Não se esforça para jogar uma grande bomba ou fazer um escândalo, você só está agitando uma bandeira e não quer que ninguém compreenda o que diz, nem mesmo para pensar e aceitar suas ideias. Olha para a sociedade com desprezo, e tudo é em vão. Você espera bater as botas antes que a senilidade chegue de vez. Você não quer ser velho e decrépito. Obrigado, não quero, vou chutar o balde antes disso. Você olha para o mundo envergonhado pela desesperança de tudo isso.
A bem da verdade, você é um homem de oitenta anos que está sendo empurrado em sua cadeira de rodas em um asilo, e as enfermeiras já estão te dando nos nervos. Você diz que tal vocês todos sumirem da minha frente? Você está vivendo sua segunda infância, não consegue dizer uma palavra sem gaguejar ou babar. Não tem nenhuma pretensão de viver no paraíso dos tolos, nem espera por isso, e torce para que isso não aconteça, bate na madeira. Você prefere morrer antes. Fala sobre sua geração,
faz um sermão, dá um discurso.
Papo reto, olho no olho.
Hoje em dia é comum assistir a um filme no celular. Aí, quando você assiste à Gloria Swanson no papel da estrela de cinema decadente Norma Desmond declarar na palma da sua mão: “Eu sou alta, são as fotos que ficaram pequenas”, há nessa frase camadas de ironia que o roteirista e diretor Billy Wilder nunca poderia imaginar. É claro que alguém que está assistindo a um filme no celular prefere assistir a coisas mais curtas e rápidas no TikTok, e não a um filme em preto e branco com duração de 110 minutos.
Cada geração tem o direito de escolher e adotar o que bem entender das gerações anteriores, com a mesma arrogância e presunção ególatras que as gerações anteriores demonstraram ao se apropriar do que julgavam melhor das gerações que vieram antes. Pete Townshend nasceu em 1945, portanto está na vanguarda da geração baby boomer, a que surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A geração que antecedeu Pete e os boomers foi chamada “geração grandiosa” – e não é um termo de autocongratulação.
Pode ser útil fazer uma pausa para definir os termos. O que significa exatamente uma geração? Atualmente, a definição mais comum é o período de tempo no qual, estatisticamente, a maior parcela da população nascida ao longo de trinta anos controla o zeitgeist. Há pouco tempo entramos numa nova fase, na qual todas as pessoas que fizeram 22 anos a partir de 2019 pertencem à geração Z. Enquanto as pessoas fazem piadas sobre os millenials, esse grupo já virou notícia de ontem, está tão obsoleto quanto as gerações anteriores – os baby boomers, a geração X, a dita “geração frágil”, os ditos “intermediários”, os “neutros”, os “confiáveis”, os “inabaláveis”, os do “grande recomeço”.
Marlon Brando, assim como Elvis Presley, Little Richard e a primeira onda de roqueiros, está num limbo entre a geração grandiosa e os baby boomers – jovens demais para lutar contra os nazistas, velhos demais para Woodstock. No entanto, quando Brando respondeu “O que você tem?” para uma garota local que perguntou contra o que ele estava se rebelando no filme O Selvagem, criou o cenário perfeito para os anos 1960 e a rebelião contra as comunidades perfeitinhas pré-fabricadas que os rapazes, ao voltarem da guerra, tentavam construir.
Como tantos boomers, Pete soa ressentido nessa canção, como se tivesse sido tratado injustamente no passado. Mas ele não está 100% confiante, parece desconcertado. De certo modo, está na defensiva, sabe que as pessoas o subestimam porque ele circula por aí. Talvez porque sinta que nunca estará à altura ou por saber que as pessoas se ressentem pelo fato de a geração dele ter tempo abundante de lazer. O que ele gostaria é que essas pessoas sumissem, desaparecessem. Ele espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. Pete nem consegue se defender, precisa de seu porta-voz, Roger, para lançar a injúria. Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam. É provável que Pete tenha sido o primeiro a dizer isso. Ele tem um assento de primeira fila na história de sua geração. Sabia ler as placas de protesto contra o ódio e a guerra e, de certa forma, ajudou a pôr fim nisso tudo – agradecemos pelo seu serviço.
Cada geração parece apresentar a arrogância da ignorância, e opta por dispensar o que aconteceu antes em vez de construir algo em cima do passado. Então é inútil para alguém feito Pete oferecer a sabedoria de sua experiência, contar tudo o que aprendeu percorrendo caminhos semelhantes. E, se tivesse tido a audácia de fazê-lo, provavelmente o interlocutor teria olhado para Pete e falado que não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo. E isso deu outra ideia a Pete.”
TRADUÇÃO DE BRUNA BEBER E JULIA DEBASSE
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.