• Emanuel

  • 22/12/2018 14:30

    Peregrinou à praça com tralhas num carrinho. Espetou o bambu numa velha lata de tinta com pedriscos. Pendurou vidrilhos, frascos coloridos, recortes de panos florais, estrelas de lata, parafusos pintados de dourado, espirais de papelão com purpurina. Na base, buquês tirados em barrancos. Sua árvore de Natal. Numa bata branca bordada de arabescos azuis, Emanuel então cantou. "Surgem anjos proclamando paz na Terra e a Deus louvor”. Potente voz em inusitado a capella.

     O povo estava acostumado a papais-noéis suando em bicas com suas sinetas, estátuas vivas de anjos barrocos, corais improvisados, mas aquilo era diferente. Um menestrel de conto medieval, levita cantando de olhos fechados, a pele morena de longa cicatriz cortada num lado da face. Um homem de dores cantava. Em meio ao esbaforido das compras deram-lhe curtos olhares de essa calçada cheia e mais esse doido aí. 

    A voz era um rio de alegria, lírica, um ímã. Ainda que meio rascante, cativava como anjo de epifania levitando na calçada. A menina parou. Outras gentes. Depois mais. Como quem ora, ele cantou exatos cinco hinos natalinos. A roda já se tinha feito multidão, pessoas filmavam com celulares, havia selfies. A maioria ouvia, em lúcida e boa hipnose. Ao fim, irromperam aplausos. Houve lágrimas. Com olhos brilhando, ele proferiu, conciso, num tímido sorriso apontando o céu: Deus Conosco. Aos meninos de rua que tinham se assentado em roda da árvore estranha, ele distribuiu restaurados carrinhos salvados de lixões e moedas de chocolate em papel dourado. As crianças o festejaram mas, com olhos brilhando, ele proferiu um tímido sorriso, apenas. 

    Recolheu suas tralhas e peregrinou de volta, lento e leve, pelas ruas todas, até ao barraco onde cuidava a mãe acamada. A anciã perguntou. Cantou o Evangelho, meu filho? Sim, mãe, ele beijou sua testa. Pôs a árvore de bambu no meio da sala. Foi capinar o miúdo quintal, plantou margaridas. Colheu lírios. Partiu para o cemitério. Depositou o pote de flores na gaveta do homem cujo coração havia esfaqueado anos atrás. Foi briga de mulher e bebedeira, podia morrer ele, morreu o outro. Sozinho no corredor de gavetas, soluçou. Depois repetiu a cantoria. Os mortos da hora desceram à terra sob canções. Os vivos que choravam, partiram confortados. 

    Um coveiro perguntou. Por que isso, meu? Cantar no cemitério em véspera de Natal? É promessa? Ele não ia dissertar, descrever mortes, arrependimentos, o passado de crimes cruéis, anos de inferno. Nem ia descrever o milagre. Aquela manhã no pátio da cadeia em que Profeta Jeremias, o preso veterano, abriu a Bíblia amarfanhada e lhe apresentou Jesus: você sabe o que significa o teu nome, rapaz? A faca daquelas palavras entalhou uma manjedoura nos ódios do seu coração. 

     Matou, era Natal. Estava morto e reviveu, era Natal. Desde então, se prometera entoar o Natal daquela forma inusitada. Sem penitência. Era um repartir. Abraçou o coveiro com o tímido sorriso. O amor de Deus, amigo. Milagres existem. Cristo nasce hoje. O coveiro saiu, balançando a cabeça. Cada maluco que aparece. De volta à casa, Emanuel cortou o panetone e o frango em fatias finas, serviu cálices de vinho e com a mãe, aguardou a filha Berê chegar com a netinha radiante com laço dourado no cabelo. À meia-noite, cantaram e trocaram beijos. Disseram: Deus é amor. Ele pegou a mãezinha no colo e juntos saíram todos para ver os corais de estrelas e anjos a jorrar luz no Universo.

    denilsoncdearaujo.blogspot.com

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