Brasil avança após 35 anos da Constituição, mas enfrenta dilemas no combate à desigualdade
Nesta quinta-feira, 5, a Constituição completa 35 anos. Mais de três décadas depois da entrada em vigor da Carta, o País ainda discute como financiar o que foi escrito no texto e reduzir as desigualdades. Não faltam distorções que aumentam as diferenças entre os brasileiros, como “penduricalhos” e supersalários no funcionalismo público. Ao mesmo tempo, a qualidade de serviços essenciais como saúde, educação, segurança pública e transporte coletivo continua sendo um gargalo no cotidiano das cidades e do interior.
Desde que o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, ergueu o livro verde e amarelo e disse que “o inimigo mortal do homem é a miséria”, o Brasil se expandiu. Em 1988, éramos 141 milhões, hoje 203 milhões – nasceram mais brasileiros de lá para cá que todas as populações atuais dos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai juntas.
Nas últimas semanas, a série do Estadão “Desigualdade – o Brasil tem jeito?” mostrou que o dinheiro federal não é usado pelos municípios no combate à desigualdade e as folhas de pagamento das prefeituras só aumentam. Após a Constituição, houve aumento do atendimento da saúde e do ensino. A qualidade da escola pública, porém, é um desafio.
A segurança pública, que foi delegada aos Estados, agrava o quadro e pressiona o governo federal e os municípios a solucionarem o problema, enquanto um lança a responsabilidade sobre o outro. A criminalidade aumentou. A taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes era de 16,78 no início da Constituição e atingiu 23,3 no ano passado. A preocupação de especialistas – e dos próprios brasileiros – é que a situação se agrave neste ano, com a onda de violência e a gestão das polícias no País.
Pela primeira vez, uma Constituição brasileira estabeleceu o direito a uma saúde gratuita para todos. Foi a Carta de 1988 que criou o Sistema Único de Saúde (SUS). Antes, o acesso à saúde era restrito a trabalhadores formais que pagavam um seguro. A taxa de mortalidade infantil caiu e a expectativa de vida aumentou. O gasto público brasileiro com saúde (3,8% do PIB) ainda é inferior à maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), superando apenas a do México (2,7%).
Na educação, houve uma garantia expressa de ensino público para todas as pessoas. O analfabetismo de jovens e adultos no País caiu de 20,7% em 1985 para 5,6% em 2022. O Brasil, porém, ocupa o último lugar em educação na avaliação do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), entre 63 países. Com a Constituição, o governo federal, os Estados e os municípios passaram a ter obrigação de usar o orçamento para investir na saúde e na educação da população.
Bola de ferro
Na prática, o Brasil teve que incluir metade da população, que não tinha acesso aos serviços, dentro do sistema público de saúde e ensino. “A nossa principal bola de ferro é que a educação só passou a ter alguma prioridade com a Constituição”, diz a professora Marta Arretche, titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). “Até ali, o Brasil era um escândalo, mesmo comparado com países com a menor renda da América Latina.”
O valor real do salário mínimo aumentou. Era equivalente a R$ 784,64 na data de promulgação da Constituição e está em R$ 1.320 atualmente. Uma novidade foi atrelar os benefícios previdenciários e assistenciais a esse valor, inclusive para pessoas que nunca contribuíram para a previdência e que ganharam o direito a uma aposentadoria mínima para a velhice.
Em comparação a 1988, a desigualdade de renda entre os brasileiros e a quantidade de pessoas vivendo na pobreza caíram, mas a crise econômica de 2015 e a pandemia de covid-19 deixaram sequelas e os indicadores nessas duas áreas vivem um “sobe e desce” ano a ano.
Apesar dos programas de transferência de renda, outras desigualdades se perpetuaram no País, como os salários, pensões e “penduricalhos” do funcionalismo público, incluindo Legislativo, Judiciário e militares, e uma tributação menor sobre os mais ricos. Nas palavras de Arretche, uma “armadilha” deixada pela Constituição. “O nosso dilema passou a ser corrigir pelo lado do gasto ou resolver o problema pelo lado da tributação. E isso significa com quem você gasta e quem você tributa.”
A questão do financiamento foi levantada pelo próprio presidente da República, José Sarney, na época. Em 26 de julho de 1988, ele foi ao ar em cadeia nacional e afirmou que “os brasileiros receiam que a Constituição torne o país ingovernável”. A resposta de Ulysses veio um dia depois, no voto e no discurso. Ele aprovou o Projeto B – uma das etapas da Constituição – com 403 votos favoráveis contra apenas 13 contrários. E respondeu Sarney no plenário: “A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida, são ingovernáveis”, disse o constituinte. “O povo nos mandou aqui para fazê-la (a Constituição), não para ter medo.”
Desigualdade guiou debates da Constituinte
Ao longo dos debates do regimento interno da Constituinte, ainda em 1987, o tema da desigualdade era uma tônica nas discussões. “Se esta nossa Constituinte não for capaz de eliminar as desigualdades regionais pela imposição de normas constitucionais, ela estará frustrando a nação”, disse o então deputado Gerson Peres.
É um problema que persiste. Na cidade goiana de Porangatu, divisa com o Tocantins, o agricultor Dario Francisco Lopes, 85 anos, sabe o que é depender de um sistema de saúde de qualidade. Ele mora com o filho Pedro Francisco Lopes, 55 anos. Dario se considera saudável, mas, pela idade, o cuidado precisa ser constante. “A saúde está mais ou menos, com a idade parece que sempre tem uma coisa ou outra. Mas, com 85 anos, não está ruim não.”
Dario tem a segurança de pagar um plano de saúde. A família fatura R$ 5 mil por mês. Para complementar a renda, o filho trabalha no conserto de sofás. Durante a pandemia de covid-19, dois familiares morreram por conta da doença. A cidade recebeu leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na crise, mas a estrutura não se manteve depois da pandemia. “Se for depender do SUS, a gente tem que ir para a capital”, diz Pedro. Porangatu fica a 400 quilômetros de Goiânia.
Polarização e escalada da violência desafiam o Brasil
A alta polarização política, com debates mais extremos, e a escalada da violência viraram problemas para o Brasil resolver 35 anos depois da promulgação da Carta. Uma réplica da Constituição chegou a ser roubada do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023, quando golpistas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. “A Constituição não nasceu na Assembleia Constituinte, nasceu nas ruas, e esse sentimento popular garante que a democracia não está ao alcance de mãos profanas”, diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos integrantes do Congresso na época.
Em meio a avanços e retrocessos, autoridades brasileiras propuseram ao longo do tempo uma nova Constituinte para resolver crises pontuais. A sugestão veio do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele pediu uma nova Constituinte em 1999, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e voltou a defender a proposta para fazer uma reforma política em 2009, quando estava prestes a encerrar o segundo mandato. Foi seguido pela então presidente Dilma Rousseff em 2013, após os protestos de rua daquele ano.
Na gestão de Jair Bolsonaro, em 2020, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, defendeu uma nova Constituinte resgatando o lema Sarney sobre o “País ingovernável”. Nenhuma das ideias foi concretizada. “Se for pensar em fazer uma reforma constitucional, melhor ir para casa”, comenta a ex-senadora e ex-deputada Rose de Freitas, uma das 26 mulheres da Constituinte. O compromisso da época foi de que Carta seria suficiente para o Brasil reduzir as desigualdades, sem necessidade de uma nova Assembleia Constituinte. No dia 5 de outubro de 1988, a Constituição foi promulgada em clima de festa. Ulysses prometeu: “A Nação vai mudar”.