Repertório-surpresa e balanço barroco agitam sala São Paulo
Dois concertos internacionais diferentes ocorrem em São Paulo em setembro, ambos dentro da temporada da Sociedade de Cultura Artística na Sala São Paulo: um recital de piano e uma apresentação de um ensemble de música antiga, com instrumentos de época.
Seriam concertos convencionais. Só que não. O pianista não anunciou nenhuma das peças que pretende tocar nos dias 13 e 14. Uma semana depois, na mesma Sala São Paulo, o concerto de música antiga anunciou previamente, como é costume, o repertório, que tem como mote a música barroca francesa na corte de Versalhes dos séculos 17 e 18 de Luís XIII, as composições dos primeiros mestres da corte de Luís XIV, o “rei Sol”, e a música dos concertos durante o reinado de Luís XV.
Ambos desafiam a engessada vida habitual da música de concerto, cheia de regras e rituais que afugentam públicos não iniciados. Tiram o melômano (público cativo) de sua zona de conforto. Obrigam a ter uma escuta ativa (no caso do recital de piano) e os expõe a antigos repertórios barrocos pouco conhecidos que têm tudo para encantá-los por seu perfume de música improvisada e pelo balanço – sim, balanço – dançante que os habita.
Coisa normal, já que se misturam a música faustosa da corte de Versalhes e a delicadíssima produzida pela viola da gamba, um instrumento parecido com o violoncelo, mas de família diferente, de sonoridades bem mais adocicadas. E que, por isso mesmo, têm potencial para alcançar públicos mais amplos.
TALENTOS. São músicos de excelência absoluta, que figuram entre os grandes da atualidade. O pianista húngaro Andras Schiff, de 69 anos, já se cansou de ter de tocar repertórios que é obrigado a anunciar com dois e até três anos de antecedência. Reclamou duramente disso em entrevista pós-pandemia: “Não sei por que os organizadores de concertos insistem tanto nisso. Não quero mais pensar com antecedência no que vou tocar. Talvez diga o nome do compositor. Quero resgatar o elemento-surpresa e a espontaneidade, quebrar as barreiras que constituem a ideia preconcebida do que é um recital de piano”.
Em São Paulo, ele tocará obras de Bach, Beethoven, Mendelssohn e Brahms, compositores que gravou extensivamente. Quais? Só se saberá na hora do recital. É o improviso reintroduzido no recital de piano romântico, como já faziam pianistas como Liszt. Húngaro como Schiff, Liszt calibrava seus recitais conforme a reação do público à primeira peça. Na segunda parte, mandava pôr no palco uma urna na qual o público colocava o nome das melodias que gostaria de ouvir o pianista improvisar. E ele as sorteava como animador de auditório.
Esse espírito de improviso era essencial no barroco. Até o início do século 19, os músicos viviam no paraíso. Faziam da música seu alimento no dia a dia, tinham inteira liberdade de misturar as próprias criações e realocá-las em outros contextos. Bach cansou de inserir trechos de suas cantatas sacras em obras profanas.
O século 19 viveu uma situação esquizofrênica. Destruiu esse nirvana em que o improviso tinha lugar de honra. A fundação do Conservatório de Paris, em 1797, inaugurou uma era em que as escolas de música ditaram as normas de formação de legiões de músicos. Com sua provocação, Andras Schiff devolve um pouco de sangue nas veias da prática musical.
VIOLA DA GAMBA. Uma semana depois, dias 19 e 20, o gambista catalão Jordi Savall, de 82 anos, um dos maiores músicos do século 21, rege a orquestra de instrumentos de época Le Concert des Nations tocando repertório barroco francês.
Com certeza, ele vai se lembrar de um momento-chave de sua vida, na década de 1980, quando foi responsável pela trilha sonora do filme Todas as Manhãs do Mundo. Savall toca a viola da gamba nesse drama maravilhoso, em que Gérard Depardieu encarna Monsieur de Sainte Colombe, o mestre do jovem músico aprendiz Marin Marais, ambos músicos reais que viveram no século 17 francês. O repertório do concerto da Sala São Paulo é praticamente o mesmo da trilha do filme. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.