• Mariana Ximenes revive o dilema da suposta traição de Capitu

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  • 31/07/2023 07:30
    Por Luiz Zanin Oricchio, especial para o Estadão / Estadão

    A personagem feminina de Dom Casmurro, talvez o mais célebre romance de Machado de Assis, entrou para a história da cultura brasileira por seus olhos. “Olhos de ressaca. Olhos oblíquos, de cigana dissimulada”, define Machado em seu romance de 1899. Agora, uma nova obra que revisita o clássico estreou nos cinemas.

    Em Capitu e o Capítulo, filme de Julio Bressane, inspirado no livro, esses olhos pertencem a Mariana Ximenes, empenhados em enfeitiçar Bentinho (Vladimir Brichta). Amigos de infância, namorados na adolescência, os dois vão se casar, embora pertençam a classes sociais muito diferentes, desnível muito grave no Rio de Janeiro do século 19, quando escreve Machado de Assis.

    Não espere aqui uma adaptação convencional do romance. Nem mesmo uma versão livre. Nos letreiros do filme, já em cartaz nos cinemas, informa-se ter sido “extraído” de Dom Casmurro. Extração, na qual o todo pode valer pela parte e alguns traços se concentram para esboçar a complexa trama na qual o personagem masculino, já na velhice, recorda seus amores, casamento e desfecho de relações com aquela moça cheia de vida, esperta, inteligente e dona de um invejável senso tático e estratégico no trato com o sexo oposto.

    O título do filme se refere a um comentário ouvido pelo cineasta do poeta e grande ensaísta Haroldo de Campos sobre o livro de Machado: “O importante não é Capitu, é o capítulo”. Traduzindo: interessa menos discutir se Capitu traiu ou não traiu Bentinho e mais debater a estrutura da obra. Haroldo, aqui, se refere ao motor central da trama de Dom Casmurro: a dúvida, quase certeza de Bentinho, da traição da esposa com seu melhor amigo, Escobar. Em acréscimo: quem seria o pai de Ezequiel, filho de Capitu: Bentinho, o marido, ou Escobar, o suposto amante?

    Essa dúvida rói a alma de Bentinho e faz com que estrague várias vidas – a sua própria, a da mulher e, por fim, a do filho, caso ele o seja.

    TRAGÉDIA

    Essa tragédia do ciúme encontra-se de tal forma incrustada no cerne do romance que uma ensaísta norte-americana, Helen Caldwell, o chamou de “Otelo Brasileiro”, constatando a influência de William Shakespeare sobre o escritor brasileiro, nascido no Morro da Providência, no Rio de Janeiro.

    De acordo com Haroldo de Campos, mais que em Capitu, deve-se prestar atenção ao formato do livro, dividido em 148 capítulos de tamanhos variáveis, alguns deles muito curtos. Não se trata de técnica incomum em Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas tem 160 capítulos e Quincas Borba, 201!

    O fato é que o poder sintético do escritor em cada unidade da narrativa pode ser reproduzido na tela através de flagrantes que, sem contar a história inteira, a tornam perfeitamente inteligível, mesmo para quem não conhece o livro. Essa foi a boa sacada de Bressane e orientou isso que, para simplificar, podemos chamar de adaptação criativa de uma obra literária. Ou “extração”, como ele prefere.

    AMBIENTAÇÃO TEATRAL

    Desse modo, em cada cena eleita por Bressane busca-se o máximo de significação. Há como uma compactação narrativa. A ambientação, quase em cenário único, é teatral, bem como a impostação de vozes dos atores e atrizes. A profundidade da fotografia (de Lucas Barbi) causa impressão é outro aspecto notável do filme.

    De resto, mesmo de forma entrecortada, Capitu e o Capítulo reproduz os passos principais dessa obra-prima da literatura brasileira. Bentinho, já idoso (papel de Enrique Diaz) recorda sua juventude e maturidade e se propõe escrever um livro a respeito. Os cortes o mostram na idade adulta (Vladimir Brichta) às voltas com Capitu (Mariana Ximenes). Escobar (Saulo Rodrigues) é casado com Sancha (Djin Sganzerla). Os dois casais são inseparáveis e projetam uma viagem juntos à Europa.

    No filme, torna-se explícita uma condição tratada de forma oblíqua no romance – a atração recíproca entre o ciumento Bentinho e Sancha, mulher do seu amigo. A sugerir que a origem do ciúme doentio é sempre uma consciência culpada. O próprio Bentinho, em sua escrita, parece ter consciência desse sentimento quando cita a frase do Antigo Testamento: “Não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.”

    Outro personagem da trama, José Dias (interpretado por Claudio Mendes) tem presença importante. Representa a figura do agregado, instituição da época de Machado. Alguém que vive com uma família mas não pertence a ela por laços sanguíneos. Goza de status como conselheiro, ajudando em tarefas e viagens, ou simplesmente fazendo companhia a solitários. De qualquer forma, intervindo, como pessoa ambígua – está fora e está dentro – no universo familiar.

    MANIPULADORA

    Quem conhece o livro sabe que a sagacidade de Capitu a leva a manipular o agregado para que ele influencie a mãe de Bentinho e ela desista da promessa de fazer do filho um sacerdote. O plano do casamento passa por eliminar essa possibilidade. No entanto, as artimanhas do agregado estão figuradas no filme apenas com uma elegante contradança entre ele e a assim denominada Jovem Senhora (Josie Antello).

    O baile é sutil. Movimento de corpos e música. Porém diz muito, e, às vezes, expressa o que as palavras não podem dizer. Por exemplo, da sabedoria de salão nos jogos de sociedade – que parecem apenas entretenimento, mas podem decidir destinos humanos.

    O cinema tem meios de que a literatura não dispõe. E vice-versa. Por isso é tão interessante – e difícil – esse diálogo entre as artes.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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