• Os segredos da playlist de Hitler: ditador ouvia russos, judeus e gays na véspera da morte

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  • 26/07/2023 11:23
    Por João Marcos Coelho / Estadão

    Quando Hitler mudou-se definitivamente para o bunker “Wolfsschanze” [Toca do Lobo], em 16 de janeiro de 1945, ele já sabia que provavelmente não sairia mais dali.

    Situado nos jardins da chancelaria do Reich, em Berlim, a 8,5 metros de profundidade, tinha 120 metros quadrados de área distribuídos por 30 salas protegidas por 4 metros de concreto. Destas, a sua sala preferida era a que tinha um retrato de Frederico, o Grande, o rei-flautista da Prússia no século 18, seu ídolo.

    Ali também ele podia desfrutar de um de seus grandes prazeres: ouvir música. Enquanto as tropas russas aproximavam-se para o bombardeio final sobre Berlim, Hitler se acalmava escutando música. Levara consigo um pacote de bolachas 78 rotações com registros de criações musicais de seus amados Beethoven, Richard Wagner e Anton Bruckner.

    Surpresas na playlist de Hitler incluem inimigos do regime

    Até aí, esta história é conhecida desde 2007, ano em que a revista alemã “Der Spiegel” publicou matéria dando conta da descoberta destes discos por um soldado russo melômano que os levou pra casa em maio de 1945, logo após a morte de Hitler. Na época, ninguém prestou muita atenção neles, coisa que agora faz Fred Brouwers, 75 anos, jornalista musical da rádio e televisão belga, apresentador por 35 anos do reputado Concurso Internacional Rainha Elisabeth, em Bruxelas.

    Se o repertório é previsível, as surpresas se acumulam em relação aos músicos que atuam nos bolachões. O livro Beethoven no Bunker, originalmente publicado em holandês em 2019, a tempo de comemorar os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial em 2020, só agora é lançado na versão inglesa, que atinge praticamente o planeta inteiro.

    Nascido em Louvain, Fred Brouwers se confessa um legítimo filho de maio de 68. “Naquele ano mágico, eu era aluno de línguas germânicas na Universidade de Louvain, onde nasci. Protestos estudantis estavam chovendo em Paris; em Louvain houve só um leve chuvisco. Como estudantes, nos rebelamos contra toda autoridade”, escreve na introdução de seu livro. “Isso se estendeu ao reino da minha maior paixão, a música. Os musicólogos explicaram que Beethoven era um gênio musical e um inimigo da autoridade ditatorial, como ficou claro em sua Terceira Sinfonia”.

    As primeiras surpresas foram as presenças de dois russos – então inimigos do Reich – na playlist hitleriana: o pianista Emil Gilels (1916-1985) e o maestro Kirill Kondrashin (1914-1981). Beethoven comparece com a “Nona Sinfonia” e duas sonatas para piano – a no. 24 e a no. 27. Mas o pianista é Artur Schnabel (1882-1951), o célebre músico judeu austríaco que fugiu da Alemanha em 1933.

    Ele conseguiu escapar, “mas sua mãe morreu no gueto de Therensiestadt”, escreve Brouwers, “Em outras palavras, Hitler via o povo judeu como “untermenschen” [subumanos], mas estava, no entanto, disposto a ouvir sua música (…) Claro que isso teria abalado sua credibilidade aos olhos de seus partidários. É por isso que ele manteve os discos cuidadosamente trancados a chave no bunker”.

    Líder nazista ouvia na surdina opositores declarados

    A ópera foi uma das paixões do Führer. Mas o que fazia em sua discoteca essencial a gravação da “Morte de Boris Godunov”, da ópera de Mussorgsky? Ainda mais com o baixo Feodor Chaliapin? “Tchaikovsky era homossexual”, lembra Brouwers. Mesmo assim, é responsável pela maior surpresa da playlist de Hitler no crepúsculo do Reich.

    Hitler ouviu muitas vezes o seu “Concerto para Violino” naquele abril de 1945 em uma versão impensável para a cartilha nazista, com o violinista judeu polonês Bronislaw Huberman (1882-1947), que fugiu da Europa em 1937. Celebrizou-se por mais do que simplesmente “ser judeu”, escreve Brouwers.

    “Ele se opôs ativamente ao nazismo e escreveu cartas a vários importantes intelectuais alemães e artistas pedindo-lhes para enfrentar o regime. Foi oficialmente declarado inimigo público do Terceiro Reich. Cereja envenenada neste bolo indigesto para os seguidores do Führer: Huberman foi o responsável pela fundação da Filarmônica de Israel em 1947 (nascida como Filarmônica da Palestina). Estima-se que Huberman salvou mais de mil judeus das garras nazistas. Mesmo assim, era ouvido com fervor e admiração solando o “Concerto para violino e Orquestra” de Tchaikovsky no bunker.

    Hitler adorava Anton Bruckner (1824-1896), um dos dois grandes sinfonistas austríacos da segunda metade do século 19, ao lado de Mahler. Bruckner era austríaco como ele (nasceram em pequenas cidades próximas). Em 1º. de maio de 1945, a rádio pública do Reich anunciou a morte de Hitler – ele se suicidara com um tiro no bunker em 30 de abril de 1945 – e em seguida transmitiu o imenso Adagio (mais de 22 minutos) da Sétima Sinfonia de Bruckner numa interpretação tecnicamente revolucionária da Filarmônica de Berlim, com seu titular Wilhelm Furtwängler, realizada pela Telefunken com seus então novíssimos microfones. Ainda hoje a qualidade técnica desta gravação surpreende.

    Bruckner compôs este Adagio pensando especificamente em Wagner, que morreu em 1883, enquanto ele compunha a sinfonia. A intenção fica explícita porque ele usa neste Adagio sublime as “tubas wagnerianas”, instrumento idealizado por Wagner que se parece com a trompa; seu registro se parece com o do trombone, anota o saudoso Henrique Autram Dourado em seu precioso “Dicionário de termos e expressões musicais”.

    Ele nos deixou no último dia 3, músico e pedagogo essencial. Este maravilhoso Adagio ficou politicamente marcado pela ligação umbilical com o nazismo, que parte de Wagner e Bruckner. O cineasta Luchino Visconti, entretanto, resgatou-o usando-o na trilha de seu filme ‘Senso” (no Brasil, “Sedução da Carne”), de 1954.

    Outros “hits” surpreendentes da discoteca de Hitler no bunker: gravações de obras de dois compositores judeus estigmatizados pelo nazismo, como Mendelssohn e Offenbach. E vários “russos desprezíveis” com Rachmaninoff e Borodin.

    Abaixo, uma playlist mínima para você ouvir e se surpreender com os bolachões que Hitler levou e guardou a sete chaves em seu último refúgio antes da derrota final.

    Adagio da “Sinfonia no. 7?, de Anton Bruckner, com a Filarmônica de Berlim

    Regida por Wilhelm Furtwängler, gravação de 1942.

    Sonata no. 24, em fá sustenido maior, op. 78, de Beethoven: Adagio cantabile – Allegro ma non troppo – e Allegro vivace.

    Com Artur Schnabel. Gravação integral das 32 sonatas, realizada entre 1932 e 1935.

    Concerto para Violino e Orquestra em ré maior opus 35, de Tchaikovsky, com Bronislaw Huberman (violino) e Orquestra da Ópera Estatal de Berlim

    Regida por William Steinberg (1899-1978). Movimentos: Allegro moderato – Canzonetta.Andante – e Finale. Allegro vivacíssimo. Gravação de 28 de dezembro de 1928.

    Ninguém é de ferro

    Tem música para todos os momentos. Hitler levou pro bunker final um pacote de gravações de seu ídolo preferencial no reino das operetas, pra balançar o esqueleto e quem sabe dançar com Eva. Enquanto a França transformou-se em quintal dos nazistas durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial, Hitler ansiava por uma folga para esticar em Paris e frequentar seu cabaré preferido, o Maxim’s.

    Os cabarés, que fizeram a glória da República de Weimar na Alemanha entre 1919 e 1932, continuaram a sobreviver a duras penas durante o Reich. A maioria dos performers, como Paul Abraham (1892-1960), sofreu barbaridades com Goebbels. Abraham merece um capítulo no livro de Brouwer.

    Misturou o jazz com a música de opereta à alemã, e fez um sucesso danado… até ser incluído na “entartete musik”, a música degenerada, pelos nazistas, em 1937. Foi para a França, dali para Cuba e depois para os Estados Unidos, onde reinou absoluto. Três gravações:

    Serviço:

    Livro “Beethoven in the Bunker”, de Fred Brouwers, 272 pgs., Other Press, 2023.

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