A justa medida da democracia
O Brasil não está entre aqueles países que souberam fazer o dever de casa em busca da justa medida da democracia. Democracias inclusivas, que realmente atendem às necessidades da população, não são encontradas a três por dois sobre a face do planeta terra. O governo do povo, pelo povo e para o povo, na forma lapidar de Lincoln, não é muito comum.
O nascimento da democracia na Grécia Clássica deve ser visto tendo o cuidado de não impor nossos valores atuais àqueles tempos e sempre dentro de uma visão da História Comparativa. Escravos e mulheres não participavam de decisões políticas tomadas em praça pública. Apenas os homens livres tinham acesso à chamada democracia direta. Ou seja, na prática, menos de um terço da população. Mas nem por isso, a experiência grega, em sua etapa inicial, foi menos importante para abrir caminho à plenitude democrática.
O avanço havido se deu por ter sido o primeiro grupamento na história humana que se governou dessa forma. Em especial, após as reformas de Clístenes, em 508 A.C., com base nas leis estabelecidas por Sólon, que derrubou privilégios. Clístenes criou os demos (distritos). Daí democracia, governo dos distritos, ou governo ou poder do povo. Era o voto distrital puro.
Na verdade, muitos países se rotulam democracias sem atender aos requisitos básicos propostos por Lincoln. No antigo Leste europeu, os países dominados pela então URSS se diziam democracias populares, sem ser uma coisa nem outra. O poder estava nas mãos de grupelhos comunistas subservientes ao poderio militar russo. Parodiando Hobbes, os acordos eram impostos pela espada.
Eduarda La Rocque, que reúne formação acadêmica com doutorado em economia pela PUC-Rio e experiência realizadora em gestão pública, como Secretária de Fazenda da cidade do Rio de Janeiro (2009 a 2012), nos fornece em seu ensaio “Democracia e informação”, publicado no livro POLÍTICA – NÓS TAMBÉM NÃO SABEMOS FAZER, nos fornece uma pista reveladora do caminho a seguir.
Reproduzo aqui um parágrafo-síntese dela sobre a natureza do problema: “Regimes democráticos só sobreviverão com uma maior coesão social a partir de um alinhamento mínimo com relação a valores – ética e transparência acima de tudo –, ao invés da visão polarizada entre esquerda e direita. A direita culpando o Estado pela ineficiência do sistema e a esquerda culpando a ganância do mercado pelas mazelas sociais. O tecido social fica esgarçado e aumenta significativamente o risco de ascensão de ditadores”.
Sou um firme partidário do debate civilizado e aproveito a oportunidade aberta pela La Rocque para comentar o que ocorreu no Brasil, saindo das agruras do hoje, e indo em direção ao nosso passado, cuja moldura político-institucional no século XIX nos abria um futuro promissor sem ditadores, com coesão social, respeito ao dinheiro público e com a permanente liberdade de expressão e de imprensa. Tais valores podem ser resumidos na prevalência da ética e da transparência acima de tudo defendidas por Eduarda.
Países podem ser vítimas de eventos fatais que abrem espaço para um futuro sombrio como ocorreu com a Alemanha nazista, a Itália fascista e a Argentina peronista, um caso de involução econômica. Hoje, cerca de 50% de sua população está abaixo da linha da pobreza. No caso brasileiro, o ponto de inflexão para pior em nossa História se deu em 1889, com o golpe militar que, a rigor, desproclamou a república. Era esta a visão sobre o ocorrido, na época, de pelo menos três presidentes latino-americanos. A melhor síntese foi por Rojas, da Venezuela: “Pronto, lá se foi a única república, de fato, que existia na América Latina”. O dramático é que as correções indispensáveis não foram feitas até hoje. Senão, vejamos.
Sem saudosismos, e mesmo abstraindo da defesa que faço do parlamentarismo com monarquia, em que o Chefe de Estado está fora do alcance direto de grupos econômicos e partidários para manter sua posição (hereditária), e tem inerente visão de longo prazo com seu interesse pessoal se confundindo com o público, e ainda está escudado contra a corrupção na medida em que é quase impossível oferecer a um monarca algo melhor do que ele já tem, a república no Brasil nasceu e continua atuando em favor de “privilégios legalizados e desigualdades legitimadas”, para usar as palavras precisas de M. Moreira em sua tese de doutorado pela UFF.
É curioso que a historiografia tradicional trate a questão da república no Brasil como fato consumado e, por vezes, um avanço. Por dois séculos, a república foi um fato consumado na Holanda, que acabou voltando a ser uma monarquia parlamentar. E não parece se dar conta de que uma monarquia constitucional possa ser mais res publicana do que ditas repúblicas, em especial no contexto latino-americano. Na verdade, entre os países mais ricos e democráticos do mundo as monarquias ocupam os primeiros lugares.
Assim como as PMs e as polícias civis, com a jornada de 24 por 72 horas, têm um problema de ineficiência estrutural, por falta de foco no que fazem, em oposição às 8 horas diárias no resto do mundo, a república brasileira padece do mesmíssimo problema em matéria de atender às reais necessidades da população. Em meu livro, “História da Autoestima Nacional – Uma investigação sobre monarquia, república e preservação do interesse público”, eu listei 12 indicadores de qualidade político-institucional na página 213.
A república, ainda hoje, mal atinge 20% desses indicadores (moeda estável e orçamento impositivo) ao passo que o Império satisfazia quase 80% deles (liberdade de expressão e imprensa, moeda estável, voto distrital puro, sistema parlamentarista, corrupção sob controle, partidos que votavam de acordo com seus programas, orçamento impositivo, confiança popular no governo, controle externo do judiciário via poder moderador).
A constatação é que nós estávamos bem mais próximos da justa medida da democracia e fomos nos afastando dela ao longo da república com ditaduras militares, civis e até do judiciário nos últimos tempos. Patético!
Assista: Dois Minutos com Gastão Reis: Militares na Política:
PARTE 1
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