• Humanismo radical

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  • 28/05/2023 08:00
    Por Leonardo Boff

    Um dos problemas mais angustiantes hoje em dia na cultura mundial é a falta de humanidade. Não olhamos para os lados para ver o outro em suas dores, buscas e necessidades. Consideremos como são tratados os imigrantes do Oriente Médio e de África que buscam a Europa por causa de guerras e de grande fome. São rejeitados e fizeram do Mediterrâneo um verdadeiro cemitério. O mesmo destino trágico sofrem os milhares de centro-americanos e mexicanos que procuram atravessar as fronteiras dos Estados Unidos. A maioria é rejeitada e alguns até mortos e crianças colocadas em gaiolas como se fossem pequenos animais famintos. Nem nos referimos à África que vive há séculos saqueada e ainda crucificada pelos europeus. Eles estão indo para a Europa porque antes os europeus estiveram lá e ocuparam e espoliaram suas terras. Os europeus foram acolhidos e agora não os querem acolher.

    Tais antifenômenos mostram como podemos ser cruéis e sem piedade para com nossos próximos que, na verdade, são nossos irmãos e irmãs. Talvez não possamos fazer muito. Mas, às vezes, basta um olhar compassivo, uma palavra de consolo, um sorriso verdadeiro, um toque na pele do outro para lhe comunicar que somos irmãos e irmãs, expressões da mesma humanidade.

    Não nos tratamos humanamente. Da mesma forma, agredimos nossa Mãe Terra a  ponto de o novo regime climático, ultrapassando os 1,5 graus Centígrados, por volta de 2025-2027, colocar em grande risco a biodiversidade e, se aumentar mais o aquecimento global,  afetar o destino de nossa vida neste planeta.

    É nesse contexto que resgatamos o melhor que o mundo já gestou: o Filho do Homem que se revelou como a presença humana de Deus entre os humanos: Jesus de Nazaré.

    Mais que nos entregar verdades, ele nos ensinou a viver os valores que davam corpo ao seu grande sonho, o Reino de Deus. Esse Reino não é como os reinos deste mundo, cercados de pompa e glória, como recentemente assistimos com a coroação do rei da Inglaterra. É um Reino de amor incondicional, de solidariedade ilimitada, de compaixão, de serviço aos mais humilhados e ofendidos, e de abertura total ao Deus-Abba (como o chamava, “meu paizinho querido”).

    Ele sempre estava ao lado daqueles que menos vida tinham, os hansenianos, os cegos, os psicologicamente afetados (na linguagem da época, os possessos do demônio), os doentes e até mortos que ele ressuscitou. Ele mesmo disse: “vim trazer vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Pelo fato de ter feito o oposto ao tipo de religião da época, ritualista e farisaica, e por ter revelado uma nova face de Deus, de infinita misericórdia e perdão, amando a todos, “até os ingratos e maus” (Lc 6,36) o crucificaram fora da cidade, símbolo da absoluta rejeição. 

    Deixou dito algo extremamente consolador “se alguém vem a mim não o mandarei embora” (Jo 6,37), podia ser uma adúltera, um herege e gente de má fama: a todos acolhia e saíam consolados.

    Ele mostrou uma radical humanidade, a ponto de os apóstolos e discípulos, considerando que “passou pela vida fazendo o bem” (Mc 7,37) e tendo vencido a morte por sua ressurreição, não sabendo como defini-lo, acabaram dizendo: humano assim como Jesus só Deus mesmo. E começaram a chamá-lo de Filho de Deus e de Deus em nossa carne quente e mortal.

    Esse humanismo radical lançou raízes profundas na humanidade. Esse humanismo universal e sem qualquer discriminação poderá devolver a nossa humanidade, coberta de cinzas pelo individualismo, pelo egoísmo, pela insensibilidade, pela falta de compaixão e pela ausência de cuidado de uns para com os outros, para com a nossa Mãe Terra e para com os seres que nela vivem.

    Termino com dois testemunhos. Um de de Franz Kafka, o grande escritor checo, que disse: “ao ouvir falar de Jesus e de seu amor, fecho os olhos para não cair como num abismo”. E outro de Fiódor Dostoiévski, que ao deixar a  Casa dos Mortos (título de seu livro) na prisão, com trabalhos forçados na Sibéria, escreveu comovidamente:

    “Às vezes Deus me envia instantes de paz; nestes instantes, amo e sinto que sou amado. Foi num destes momentos que compus para mim mesmo um credo, onde tudo é claro e sagrado. Este credo é muito simples. Ei-lo: creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais humano e de mais perfeito do que o Cristo; eu o digo a mim mesmo com um amor cioso que não existe e não pode existir. Mais que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade”.

    Depois desta profissão de radical humanidade e de fé nada mais temos a dizer.

    Leonardo Boff escreveu Jesus Cristo Libertador, Vozes, 21. Edição, 2012.

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