Como Charles III vai liderar a Igreja Anglicana num Reino Unido mais diverso e menos religioso
A presença de um líder político hindu e outro muçulmano na cerimônia de coroação de Charles III mostram como o Reino Unido mudou desde que sua última monarca subiu ao trono, em 1953. As ideias do novo rei sobre fé e sua estima pela diversidade religiosa aproximam seu reinado de uma sociedade mais multicultural hoje do que quando Elizabeth II tornou-se rainha.
Segundo o jornal The Telegraph, espera-se que o rei reconheça durante sua fala na coroação que servirá a todas as fés religiosas e não apenas à Igreja da Inglaterra, na cerimônia que terá, entre outros convidados, os primeiros-ministros britânico, Rishi Sunak, um hindu, e escocês, Humza Yousaf, um muçulmano.
O juramento de coroação, no qual ele se comprometerá a ser “defensor da nossa (Igreja da Inglaterra) fé”, não deve mudar. Ao ser coroado rei, Charles também se torna o governador supremo da Igreja da Inglaterra. Mas segundo o jornal, o rei planeja usar as palavras de forma que demonstre seu compromisso com as múltiplas confissões da sociedade britânica.
Em outubro, a Unidade de Constituição da University College London (UCL) recomendou que o rei jurasse defender todas as crenças religiosas, sugerindo que assim refletiria melhor o Reino Unido moderno e multicultural. Espera-se que haja uma expressiva presença de representantes religiosos de denominações cristãs e não cristãs na cerimônia. O Arcebispo de Canterbury e o clero anglicano serão, porém, os principais celebrantes.
A visão de Charles sobre religião e espiritualidade é um dos aspectos que o diferencia de sua mãe, que morreu em setembro. Ainda que os dois pudessem ser caracterizados como devotos da fé cristã liberal e aberta e membros comprometidos da Igreja da Inglaterra, suas abordagens são diferentes.
O reverendo e professor emérito de história cultural e espiritual da Universidade de St. Andrews Ian Bradley, um especialista em fé e monarquia, define a fé de Elizabeth como mais simples e direta. “Ela era mais protestante e enraizada nos valores de perdão, misericórdia e abertura, que considerava serem as características particulares de Jesus Cristo”, explica em entrevista ao Estadão.
Por outro lado, a fé de Charles, ainda que igualmente profunda e sincera, segundo o professor, é mais complexa, inquieta e questionadora. “Isso se deve, em parte, a uma diferença geracional. Ele é um filho dos anos 50, 60, quando havia muito questionamento da fé e das certezas”, compara Bradley, autor de God Save the King: The Sacred Nature of the Monarchy (Deus Salve o Rei: A Natureza Sagrada da Monarquia, na tradução livre).
Com frequência, a rainha Elizabeth fazia referência a outras religiões em suas mensagens de Natal e sempre dizia que todos poderiam aprender uns com os outros. Mas a rainha era mais reservada ao falar sobre sua fé. Seu filho, porém, enfatizou mais a espiritualidade e, segundo Bradley, empreendeu uma espécie de cruzada pessoal contra o secularismo e o materialismo modernos.
O pesquisador da UCL Bob Morris, que co-assina a recomendação ao rei, explicou em um artigo publicado pelo site The Conversation que, desde 1945, dois processos sociais simultâneos mudaram a relação do Reino Unido com a religião.
O primeiro foi o aumento da secularização – mais de 50% da população atualmente não tem afiliação religiosa. O segundo foi o aumento da pluralização, com o número de seguidores de religiões não cristãs somando cerca de 9% da população.
Um levantamento do Centro Nacional de Pesquisa Social mostra que o número de fiéis caiu drasticamente ao longo do tempo, com apenas 12,5% dos britânicos, em 2020, se considerando membros da Igreja da Inglaterra, abaixo dos quase 36% em 1985.
O tipo de fé de Charles, mais voltada para a espiritualidade do que ao dogma, o coloca, de certa forma, mais próximo do público britânico. “Ele representa os pontos de vista de muitos que estão incertos, são agnósticos ou indagadores em sua fé e perspectiva”, explica Bradley.
O professor lembra, porém, que como rei Charles estará mais comedido do que como príncipe de Gales e não poderá se expressar tão abertamente. O quanto suas ideias poderão influenciar a sociedade ainda não está claro. Uma pesquisa em 2000 o elegeu a terceira figura religiosa mais influente do Reino Unido.
“Ele certamente não será capaz de deter ou reverter o declínio da frequência à igreja, mas talvez faça da monarquia um agente para a ressacralização da sociedade britânica e um contra-ataque à sua secularização”, afirma o Bradley.
O rei e a Igreja
Bob Morris explica em seu artigo que os vínculos constitucionais do rei com as igrejas cristãs derivam das reformas protestantes do século 16, que assumiram diferentes formas na Inglaterra e na Escócia. No fim do século 17, quando ameaçado por estados católicos, a legislação proibiu os católicos romanos, ou (até 2013) qualquer pessoa casada com um deles, de ocupar o trono.
A regra em vigor hoje afirma que um rei britânico não pode ser católico romano, deve estar em comunhão com a Igreja da Inglaterra e jurar que é um protestante fiel. Ele deve também preservar a Igreja estabelecida da Escócia, um de seus primeiros atos ao ser proclamado rei.
A coroação do rei consiste em um serviço religioso e um rito durante o qual ele é ungido e coroado pelo Arcebispo de Canterbury, primaz da Igreja da Inglaterra. Segundo Morris, nos juramentos de coroação prescritos pelo Parlamento em 1689, o rei jurará, entre outras coisas, “manter e preservar inviolavelmente” o estabelecimento da Igreja da Inglaterra e os direitos e privilégios de seu clero.
O monarca é o chefe supremo da Igreja da Inglaterra desde 1558, quando Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica para se divorciar de Catarina de Aragão e se casar com Ana Bolena. Ele nomeia todo o clero sênior do país, após um processo de seleção.