• Atos linguísticos

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  • 07/05/2023 08:00
    Por Ataualpa A.P. Filho

    Talvez pelo cansaço, na noite de sexta-feira (28/04), voltei para a sala dos professores, após os três primeiros tempos de aula, um pouco mais pensativo. Compartilhei com os colegas algumas dificuldades que tenho encontrado ao abordar questões relacionadas às regências verbais.  Esse assunto, com frequência, gera polêmica, porque algumas regras gramaticais nem sempre são observadas na linguagem cotidiana.

    Alguns verbos precisam de delimitação semântica, ou seja, pedem complemento por meio de preposição. Porém, há outros verbos que não necessitam de preposição para estabelecer a complementação de sentido. 

    Após mencionar a lógica sintática que leva a implicações semânticas; em tom descontraído, falei que ali ninguém mais iria “no banheiro”, mas “ao banheiro”.  Disse que “Chegar ao ônibus” é diferente de “chegar no ônibus”. Tais frases têm sentidos diferentes. E, já que estava com a mão na massa, aproveitei para fazer algumas sugestões: trocar o “tu é” pelo “tu és”, o “tu foi” pelo “tu foste”, o “mandei ele comprar” por “mandei-o comprar”, o “pra mim fazer” pelo “para eu fazer”. Em síntese, aproveitei a oportunidade para falar da influência dos vícios da linguagem oral na produção de texto. Em qualquer concurso, em qualquer exame de seleção em que há Redação, a linguagem escrita é exigida na modalidade formal. E assim tentei mostrar a importância da “norma” para a manutenção de um padrão linguístico em que a coerência deve ser mantida para beneficiar a comunicação.

    Como estou nesta estrada há algumas décadas, posso afirmar que atualmente as resistências no processo de assimilação das regras gramaticais têm sido maiores do que em outras épocas.  Sei que o coloquialismo abre espaço para as mudanças no que se refere à regência verbal. Ouve-se mais “assistir o jogo” do que “assistir ao jogo”. Gradativamente, essas mudanças são assimiladas gramaticalmente. Contudo, não ocorrem de forma repentina.

    Na quarta-feira (26/04), foi incluído o verbete “Pelé” na versão digital do dicionário Michaelis:

    “Pe.lé® adj m+f sm+f  Que ou aquele que é fora do comum, que ou quem em virtude de sua qualidade, valor ou superioridade não pode ser igualado a nada ou a ninguém, assim como Pelé®, apelido de Edson Arantes do Nascimento (1940-2022), considerado o maior atleta de todos os tempos; excepcional, incomparável, único. Ele é o pelé do basquete. Ela é a pelé do tênis. Ela é a pelé da dramaturgia brasileira.”…

    O vocábulo “pelé” na função adjetiva já era usado, porém há restrições para o uso como substantivo. O “®” que se apresenta ao lado da palavra designa marca registrada, ou seja, caso alguém queira usar esse nome em algum estabelecimento comercial ou produto terá que pedir licença. Uma palavra pode ter dono, mas a língua não. A língua é um bem coletivo, é do povo. A língua tem um dinamismo que não se restringe a limites territoriais. A normatização da Língua Portuguesa no Brasil não é da competência de nenhum Município, nem de nenhum Estado. 

    Os projetos de leis que estão sendo colocados em votação em municípios e estados com o propósito de proibir o uso da linguagem neutra nas escolas são inócuos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é de competência da União. Em outras palavras, as mudanças não ocorrem assim de forma impositiva. E aqui vale ressaltar que não se trata de um acordo ortográfico, ou seja, colocar ou tirar acento, colocar ou tirar hífen, mas de mexer na estrutura sintática da língua. Criar flexões em um gênero que não está inserido na Língua Portuguesa. Outro ponto que deve ser considerado está relacionado ao caráter universal da língua, não se restringe somente ao nosso país, nem ao meio urbano. 

    Quando nasci, “farmácia” já não tinha “ph”. Mas já encarei duas reformas ortográficas: uma como aluno, no início da década de 70; a outra veio quando já estava em sala de aula como professor, o acordo aprovado em outubro de 1990 que passou a vigorar em 2016.

    Confesso que tenho saudade do trema (¨) com frequência, do hífen do “pé de moleque”, ainda não me familiarizei com “ultrarromantismo” (com dois erres). Guardo, com cuidado, alguns livros nos quais ainda encontro “sòmente”, com acento grave para marcar a pretônica. Releio Guimarães Rosa para navegar em neologismos. Em “Grande Sertão: Veredas”, ele afirmara: “enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães…”

    Na Arte, a liberdade deve ser plena. Mas, em documentos oficiais, contratos, deve prevalecer a linguagem padrão que respeita a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB).

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