• Um coração itinerante

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  • 04/05/2023 08:00
    Por Fernando Costa

              Éramos crianças lá nas cercanias de Hermogênio Silva, Distrito de Três Rios, onde nascemos. Existia um velhinho de nome Faustino de baixa estatura, barbas brancas e pele de ébano.

              Fumava cachimbo e andava descalço e dizia-nos que com seu calcanhar poderia matar uma cobra ante a enorme calosidade. Fazia pequenos serviços para nós da redondeza.

              Era bom e paciente conosco. Não se sabe como surgiu o hábito, nem quem o criou, mas, fato é que quando o acenávamos, dizendo-o: “coração dói”, ele respondia: “ah, dói…”

              E nós em algazarra sempre que o víamos passar, íamos logo atrás dele proferindo repetidas vezes: “Seu Faustino, “coração dói…” e ele logo respondia “ah dói…”

              E isso, por dezenas de vezes, sem qualquer irritação ou mal-humor. Gostávamos dele e do som que emitia.

              Era sereno e suave. Saudosismo ou não vem à memória a Terra Natal, das missas, ladainhas, terço e coroações de Nossa Senhora.

              Rememoro o cair da tarde e as histórias que mamãe contava, sentados na imensa pedra estofada que adornava o grande portão de nossa casa onde havia um pontilhão feito em braúna.

              A linha do trem e a rodovia eram próximas. Isso me levou a ser atropelado aos quatro anos quando papai estacionou seu automóvel.

              Marina, minha irmã foi buscar seus pertences que ali deixara e não percebeu que eu a segui e fui jogado por muitos metros à frente do atropelador.Fui levado ao   hospital. Minha casa era antiga e bonita, fiel ao estilo colonial, repleta de vidraças enormes e em seu interior existiam cercaduras azuis todas contornadas por andorinhas. Vez por outra deixo a marca dos pássaros nos desenhos.

               À frente do casarão era toda adornada de mangueiras, coqueiros, ipês, mulungus e flamboyants.

               Eles dividiam o cenário com bromélias suspensas em suas frondosas hastes.Vários artistas plásticos, dentre eles o consagrado Samuel Salvado retrataram-na em vários ângulos.

                Eu gostava de plantar flores e regá-las, mais ainda, de ouvir pelo rádio “a escolinha do caçula”, se a Marly deixasse. Fui aluno de Tia Sebastiana, Geny e Alice Gac, Sylvia Siqueira e Philadelphia Baptista Reis, que tem morada certa em meu coração. Impossível esquecer os Pes. Ferdinando Osimani e Geraldo Lima, D. Martha, Carmen, Rose Heleni, Eudóxia, Dulce Neves e irmãos, Família Ramos, etc.

                Mamãe retornou ao Pai aos 83 anos e 11 meses.  Durante 58 anos e 4 meses, sem contar os 9 meses que habitei o sacrário de seu ventre com ela convivi em clima de amor.

                Ela derramou Maria em meu coração. Meu pai honrou a missão e vivia entregue aos negócios.

                E ela era a presença amiga, a heroína e o nosso espelho. No silêncio e em orações era conselheira, severa se necessário e um anjo sempre. Não havia hierarquia ou predileção pela dúzia de filhos, dezenas de netos, bisnetos e pelo trineto. Casada em primeiras núpcias com Mário Duarte Louzada trouxeram à luz três filhas, enviuvou-se e casou-se em segundas com o papai Waldemiro Rodrigues da Costa advindo mais nove filhos dentre os quais me incluo.

               No dia 17 de janeiro de 2023, mamãe completaria 100 anos de nascimento, mas há dezessete anos ela renasceu para o Senhor, sob o pálio da Rainha dos Céus, Anjos e Santos.

                E uma lágrima cai… A história estaria incompleta sem a presença de meus irmãos, sobrinhos, parentes e amigos citados ou não na certeza de que são mantidos no relicário em meu peito. Com toda razão sempre esteve o filósofo popular Senhor Faustino quando sabiamente nos ensinou um dia que o “coração dói, ah dói…”.        

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