• 25 anos de paz na Irlanda do Norte à sombra do conflito

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  • 15/04/2023 15:40
    Por Jill Lawless, Associated Press / Estadão

    Peter Olphert tinha 14 anos de idade quando atiradores do Exército Republicano Irlandês, o IRA, mataram seu pai. Quarenta anos depois, ele diz que é hora de deixar o passado de lado.

    Mark Thompson perdeu seu irmão para os tiros do Exército Britânico, outra vítima dos conflitos que assolaram a Irlanda do Norte por três décadas, conhecidos como “the Troubles”. Ele acha que a sociedade não pode avançar enquanto não enfrentar as questões pendentes e punir alguns dos responsáveis.

    Este mês se completam 25 anos desde que o Acordo de Belfast praticamente acabou com o derramamento de sangue que deixara 3.600 mortos, 50.000 feridos e milhares de pessoas em luto. A Irlanda do Norte comemorou o aniversário com uma reunião dos principais atores do processo de paz e uma visita do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden na semana passada.

    O acordo de paz pode ter interrompido os combates, mas persiste uma profunda cisão sobre o legado do conflito, dificultando que parte do 1,9 milhão de habitantes da Irlanda do Norte consiga superá-lo. A saída da Grã-Bretanha da União Europeia só complicou a questão, criando tensões políticas que abalaram os alicerces do acordo de paz.

    “Está na hora, na minha opinião, de traçar um limite e seguir adiante”, diz Olphert, que se aposentou recentemente depois de 30 anos como policial – o mesmo emprego de seu pai, John Olphert, que foi morto em 1983 por atiradores mascarados na loja da família.

    De certa forma, Olphert tomou anos atrás a decisão de seguir adiante. Ele conta que teria sido “muito fácil” para ele, um adolescente em luto, se juntar a alguma das milícias lealistas aos britânicos na guerra contra os militantes republicanos irlandeses, um conflito entre vizinhos que também envolveu as forças armadas britânicas.

    “Havia aquele convite ali, digamos assim, para que eu seguisse um certo caminho e me vingasse. Mas isso nunca me interessou”, diz. “Quanto mais você perpetua o que aconteceu no passado, mais gerações terão essa amargura”.

    Thompson, porém, argumenta que, para muitas famílias enlutadas, superar não é tão simples, e seguir adiante sem lidar completamente com o passado poderia acabar inadvertidamente criando o cenário para mais conflitos.

    Depois que seu irmão Peter foi morto a tiros em Belfast, em 1990, por soldados britânicos disfarçados, ele se tornou um dos fundadores do Relatives for Justice (Familiares pela Justiça), um grupo que faz campanhas para revelar a verdade sobre os assassinatos envolvendo forças de segurança do Reino Unido, que geraram poucos processos criminais.

    “Dizer que precisamos traçar um limite significa que não aprendemos as lições que vêm disso”, diz Thompson. “A lição para qualquer sociedade que emerge de um conflito é que você não pode varrê-lo para debaixo do tapete, porque (…) isso revigora algumas das mágoas que levam a mais conflitos”.

    Encerrar os conflitos exigiu um equilíbrio entre identidades concorrentes na Irlanda do Norte, que permaneceu no Reino Unido depois que o restante da Irlanda conquistou a independência um século atrás. Os nacionalistas irlandeses ao norte, majoritariamente católicos, buscam se unir à República da Irlanda, enquanto os unionistas de maioria protestante querem permanecer parte do Reino Unido.

    O Acordo de Belfast, celebrado em 10 de abril de 1998, depois de quase dois anos de negociações com apoio dos EUA, comprometeu os grupos armados a cessarem os combates, acabou com o domínio britânico direto, e criou um legislativo e um governo na Irlanda do Norte, com poder compartilhado entre os partidos unionistas e nacionalistas.

    “Hoje temos apenas uma noção do prêmio que está diante de nós”, disse o então primeiro-ministro britânico Tony Blair, no dia em que o acordo foi fechado. “O trabalho para ganhar esse prêmio continua. Não podemos, não devemos deixá-lo escapar.”

    O acordo de paz foi muito mais bem-sucedido do que muitos esperavam, apesar dos ataques ocasionais por grupos armados dissidentes, que no mês passado levaram as autoridades do Reino Unido a avaliar o nível de ameaça de terrorismo da Irlanda do Norte como “grave”, o que significa alta probabilidade de um ataque.

    Durante o período dos conflitos, o centro de Belfast se tornava uma cidade fantasma durante a noite, cercado por um anel de segurança de aço. Agora, bares movimentados, cafés descolados e cervejarias artesanais povoam as ruas vitorianas. Um campus novo em folha da Universidade de Ulster está ajudando a reviver o castigado centro da cidade.

    Steve Malone, guia turístico que conduz passeios a pé focados no passado sangrento de Belfast, diz que “as pessoas realmente só sabem duas coisas quando se fala em Belfast: elas pensam no conflito e no Titanic”, o malfadado transatlântico construído no estaleiro da cidade.

    “É um lugar muito diferente agora”, diz ele. “Até na infraestrutura física. Atualmente temos um sistema de transporte que liga o lado oeste da cidade, de maioria católica, ao lado leste, dominado pelos protestantes. Isso não acontecia durante o conflito.”

    A ameaça de violência, porém, nunca desapareceu completamente, e Katy Hayward, professora de sociologia política na Queen’s University de Belfast, considera que um dos objetivos do acordo de paz vem sendo negligenciado: a reconciliação.

    Ela diz que o acordo deu muita ênfase à libertação das pessoas presas por participarem do conflito, e sua reintegração à sociedade. Como resultado disso, segundo ela, os ex-militantes “permanecem poderosos e influentes” em suas comunidades, muitas vezes em detrimento dos que atuaram no processo de paz.

    “Nunca lidamos adequadamente com as causas da situação em que a violência ainda é exaltada em algumas comunidades”, diz Hayward.

    Um plano do governo do Reino Unido de extinguir os processos contra militantes e soldados britânicos pelos supostos crimes cometidos durante o conflito só deixaria ainda mais distante a esperança de responsabilizar os causadores. O plano vem enfrentando oposição generalizada.

    A possibilidade de violência é a razão pela qual “muros de paz” de 8 metros de altura ainda separam alguns vizinhos nacionalistas e unionistas em Belfast. Murais rivais de combatentes mascarados do IRA e militantes lealistas armados ornamentam as ruas de ambos os lados.

    A saída da Grã-Bretanha da União Europeia, que deixou a Irlanda do Norte numa posição desconfortável entre o restante do Reino Unido e a Irlanda, integrante da UE, também perturbou um delicado equilíbrio político, inclusive o sistema de divisão de poder estabelecido pelo acordo de paz.

    A Assembleia da Irlanda do Norte não se reúne há mais de um ano, depois que o principal partido unionista se retirou do governo para protestar contra as novas regras comerciais impostas à Irlanda do Norte após o Brexit.

    Alguns argumentam que a estrutura de compartilhamento de poder não funciona mais numa Irlanda do Norte em mutação, onde mais de 40% das pessoas rejeitam os antigos rótulos sectários e não se identificam nem como nacionalistas, nem como unionistas.

    Os católicos agora superam os protestantes em número pela primeira vez, e permanece sem resposta a pergunta sobre o destino da Irlanda do Norte a longo prazo, que fundou o conflito: irá permanecer no Reino Unido ou se unir ao sul? O Acordo de Belfast autoriza um plebiscito sobre a unificação da Irlanda, caso as pesquisas mostrem que tem boas chances de aprovação.

    “É uma paz imperfeita em muitos sentidos”, diz Thompson. “(Mas) há milhares de pessoas hoje que provavelmente foram poupadas de ferimentos, luto e prisão em razão do acordo.”

    Olphert diz que seus filhos, agora na casa dos 20 anos, cresceram em uma sociedade transformada em relação ao lugar segregado e perigoso que ele conheceu.

    “Eles não têm noção de como era, e eu não quero que eles jamais tenham noção de como era, porque ficou no passado”, diz. “O conflito se tornou história para a geração das crianças que estão crescendo agora. E isso é bom.”

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