Crise europeia de habitação é ainda mais grave em Portugal
Georgina Simões, como um número cada vez maior de pessoas em Portugal, não ganha mais dinheiro suficiente para ter onde morar. A cuidadora de idosos de 57 anos ganha menos de 800 euros (4.500 reais) por mês, assim como aproximadamente um quarto da força de trabalho do país.
Ao longo da última década, ela sobreviveu porque vinha pagando apenas 300 euros (1.700 reais) pelo aluguel de seu apartamento de um quarto em um bairro simples de Lisboa. Agora que os aluguéis dispararam na capital, está sendo despejada por seu locador.
Ela diz que não pretende ceder, porque encontrar outro lugar perto do trabalho vai ser caro demais. “Você vive em um estado de ansiedade”, diz ela em seu apartamento com uma vista parcial para o rio Tejo.
“Todos os dias você acorda pensando: ‘Vou ficar aqui ou preciso sair?'”
Simões e muitas outras pessoas, abrangendo cada vez mais a classe média, estão sendo excluídas do mercado imobiliário português em razão do aumento dos aluguéis, da disparada do valor dos imóveis e dos crescentes juros hipotecários, alimentados por fatores como o crescente fluxo de investidores estrangeiros e os turistas em busca de locações de curto prazo.
O medo crescente dos últimos dias sobre a saúde das instituições financeiras, assim como a perspectiva da continuidade da inflação alta, aumentaram a incerteza ainda mais.
O governo de centro-esquerda do Partido Socialista divulgou no mês passado um pacote de medidas para lidar com o problema, e algumas delas foram aprovadas pelo Conselho de Ministros na quinta-feira, 16.
Entre 2020 e 2021, os preços dos imóveis em Portugal dispararam 157%. Entre 2015 e 2021, os aluguéis subiram 112%, segundo a Eurostat, agência de estatísticas da União Europeia.
O aumento do custo dos imóveis, porém, é só uma parte da história. Portugal é um dos países mais pobres da Europa Ocidental e há muito tempo busca investimentos com base em uma economia de baixos salários.
Pouco mais de metade dos trabalhadores portugueses ganharam mais de mil euros (R$5.600) por mês no ano passado, de acordo com as estatísticas do Ministério do Trabalho.
Em toda a UE, o recente aumento da inflação, especialmente a subida dos preços de alimentação e energia, e as consequências econômicas e trabalhistas remanescentes da pandemia da covid-19 agravaram o dilema da habitação no bloco de 27 países. Mais de 82 milhões de famílias na UE têm dificuldades para pagar seu aluguel, 17% das pessoas moram em acomodações superlotadas, e mais de 10% gastam mais de 40% da renda com aluguel, segundo o bloco.
Quem mais sofre com o acesso desigual à moradia digna e acessível são jovens, famílias com crianças, idosos, pessoas com deficiência e migrantes.
Em Portugal, o problema foi agravado pelo turismo, cujo robusto crescimento anterior à pandemia voltou com força total, assim como um fluxo de investidores estrangeiros que encontraram em Lisboa preços de imóveis relativamente baixos, e vêm impulsionando os aumentos que expulsam os moradores locais de seus bairros.
Depois de atrair um número recorde de 25 milhões de turistas estrangeiros em 2019, Portugal recebeu 15,3 milhões de pessoas no ano passado – um aumento de 158% após o ano anterior com restrições pandêmicas. Os analistas preveem um aumento de 33% este ano.
Para algumas pessoas, o tão esperado sucesso do país entre os turistas estrangeiros é um típico caso de se ter cuidado com o que deseja. Rosa Santos, uma mulher de 59 anos nascida e criada em Lisboa perto do Castelo de São Jorge, uma construção do século XIV com vista para a cidade portuária, conta que a maioria das casas em seu bairro está ocupada por locações de curto prazo, aluguéis de temporada principalmente para turistas estrangeiros. É comum ver e ouvir os visitantes arrastando suas malas pelas ruas de paralelepípedo.
As ricas tradições dos moradores locais desapareceram, e não há sequer uma padaria ou mercearia mais, conta Santos. “Não é mais um bairro”, disse.
“Isto não é uma cidade, é um parque de diversões.”
Ativistas estão combatendo a tendência que vem roubando o charme da capital.
Santos faz parte de um movimento cada vez mais forte que propõe convocar um plebiscito para impedir os aluguéis de temporada de curto prazo em Lisboa. Eles se reúnem todos os fins de semana em algum dos bairros da cidade para coletar assinaturas em prol desse objetivo.
São necessárias pelo menos 5.000 assinaturas para iniciar o processo de plebiscito na prefeitura.
Em um recente dia chuvoso, a polícia estava ajudando trabalhadores municipais com retroescavadeiras a demolir habitações improvisadas ilegais nos arredores de Lisboa, onde não há energia elétrica, nem água encanada. As famílias obrigadas a morar ali por necessidade imploravam que parassem.
Os barracos estavam a apenas alguns quilômetros de condomínios de luxo em construção à beira-mar, onde um apartamento de quatro quartos é vendido por 2,4 milhões de euros (R$13,6 milhões).
Não muito longe dali, no bairro popular de Camarate, perto do aeroporto de Lisboa, o missionário José Manuel ajuda famílias necessitadas, algumas das quais não conseguem pagar sequer por um quarto, que dirá por uma casa, e consequentemente estão sendo expulsas da cidade.
“Já estamos falando de um quarto em Camarate por 400 euros (R$2.300), uma casa por 600 ou 700 euros (R$3.400 a 4.000)”, conta. “Aqueles que ganham um salário mínimo não podem pagar por uma casa.”
Grupos populares pelo direito à moradia surgiram e estão ajudando as pessoas que lutam para manter um teto sobre suas cabeças. Um deles, chamado Habita, está pressionando as autoridades para deixarem de estimular empreendimentos de alto padrão construídos por e para estrangeiros abastados.
Para Rita Silva, do Habita, o governo também precisa introduzir controles mais rígidos sobre os aluguéis e “impedir os despejos enquanto não houver alternativas adequadas de moradia”.
O primeiro-ministro António Costa considera que as cidades que perdem seus habitantes deixando de lado sua “autenticidade” e se tornam “uma Disneylândia” para os turistas.
Entre as medidas que seu governo espera que tragam uma correção de mercado estão:
– Obrigar os proprietários de imóveis desocupados a oferecê-los em aluguel, dando prioridade a locatários abaixo de 35 anos, famílias monoparentais ou famílias cuja renda tenha diminuído mais de 20%;
– Limitar os aumentos dos novos contratos de locação em 2% acima do contrato anterior;
– Acabar com o programa de “vistos gold” do governo, que concede autorização de residência a ricos investidores estrangeiros que comprem imóveis em Portugal;
– Suspensão da concessão de novas licenças, exceto em áreas rurais, para locação de temporada de curta duração por meio de plataformas de hospedagem turística;
– Mudança de imóveis comerciais para uso residencial.
As propostas geraram polêmica: alguns as consideram duras e equivocadas, outros dizem que faltam detalhes sobre como irão funcionar. E alguns estão irritados.
Hugo Ferreira Santos, da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários, diz que o investimento estrangeiro estacionou enquanto as pessoas esperam para ver o formato das mudanças no visto gold.
“O que tenho ouvido dos investidores internacionais é que Portugal não é um país com credibilidade”, diz.
“É um país que muda as regras no meio do jogo e onde o investimento estrangeiro não é bem-vindo.”
Pequenos investidores em apartamentos para locação de curto prazo também se sentem prejudicados. “Há pessoas que deixaram suas vidas, começaram o próprio negócio, geraram empregos, têm empregados, e de repente um belo dia são derrubados sem nenhuma perspectiva”, diz Eduardo Miranda, dirigente de uma associação portuguesa que representa os interesses da categoria.
Algumas medidas exigirão a aprovação do parlamento, e outras poderão ser remetidas ao Tribunal Constitucional para verificação.