• Nossos periódicos, chamados de Constituições

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  • 18/03/2023 08:00
    Por Gastão Reis

    A breve duração de nossas constituições republicanas dá bem a medida de sua ineficácia. Ao que me lembro, no final da década de 1980, surgiu no Rio de Janeiro uma piada apropriada. Um indivíduo chega numa banca de jornal e pede um exemplar da constituição. Recebeu do jornaleiro a seguinte resposta: “Não vendemos periódicos, senhor”. Quando pensamos na Carta de 1988, com mais de 100 emendas em poucos anos, a conclusão é que ela se tornou recordista em desacertos. E foi a constituição com maior participação popular de nossa história republicana. O que deu errado?

    O caso brasileiro encerra algumas lições que já deveríamos ter aprendido há muito tempo. Nossa constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I, é acusada de não ter tido participação popular. Não obstante, foi a que mais durou ao longo de 63 anos. (Merece registro o fato de ter sido a única enviada às Câmaras Municipais para ser ratificada.) A de Portugal de 1826, baseada na nossa de 1824, também outorgada pelo mesmo Dom Pedro como rei português, foi também a mais longeva, tendo durado 72 anos. Como explicar tais casos?

    Não há necessidade de destroncamento de cérebro para entender. (As maluquices republicanas brasileiras em matéria de constituições é que o requerem.) No mundo com a cabeça no lugar, nosso caso até 1889, conhece o que é definido como a boa técnica constitucional. Interessante é que isso vem do grande legislador grego, Solon, que, em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica de Atenas. Antes de Aristóteles, ele estabeleceu o princípio do governo da Lei e não dos humores dos homens. Foi ele quem implantou em Atenas a lei igual para todos, nobres e plebeus.

     Atenas, antes de suas reformas, era dominada por uma aristocracia hereditária, os eupátridas, que monopolizavam o poder e a riqueza. Essa situação injusta gerava rebeliões e lutas sociais contra a opressão que pesava sobre os plebeus. Como líder, Solon agia com firmeza, moderação, sabedoria e integridade. Sua personalidade ímpar criou as condições para que lhe fossem dados plenos poderes para realizar as reformas necessárias.

    Um pequeno resumo delas servirá de contraponto ao que ocorreu com a Carta de 1988. Elas são as seguintes: proibição da escravidão por dívidas; anistia para as dívidas dos camponeses, oriundas de empréstimos extorsivos dos eupátridas; abolição da hipoteca sobre bens e pessoas; imposição de limites às grandes propriedades agrícolas; direito de voto para os trabalhadores; a participação política deixa de ser por nascimento e passa a ser censitária. É considerado o fundador da democracia ateniense.

    Foi assim que Solon instituiu o princípio da Lei sobre a vontade arbitrária dos homens. Passou a valer para todos. O grande equívoco da Carta de 1988 foi fazer, de certa forma, o oposto do que Solon instituiu. A grande participação popular não se pautou pelo princípio da lei ser igual para todos. Grupos de interesse conseguiram colocar em letra de forma privilégios legais que não deveriam estar na constituição. Aquela história de todos são iguais, mas alguns são mais iguais, exposta no livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, que satirizava o totalitarismo, criado pela Revolução Russa, de 1917.

    Hora de fazer um contraponto com a Carta de 1824, vista com certa superficialidade até mesmo por juristas. A verdade é que nossa constituição de 1824 atendia, de um modo geral, a questão da primazia da Lei sobre a vontade de quem estava no poder. O primeiro contra-argumento seria em relação ao poder moderador, privativo do monarca, que lhe concedia amplos poderes. Até além do que seria necessário para o bom exercício do quarto poder, presente em todos os países parlamentaristas, ainda hoje, que é a Chefia de Estado. Aquele poder que entra em ação quando os demais se desentendem. Nas crises, poderes independentes e harmônicos são uma contradição em termos.

    José Murilo de Carvalho nos alerta que funcionou bem na época num ponto fundamental. Criou mesmo um sorrites em oposição ao de Nabuco. Se coubesse ao Chefe da Maioria organizar o novo ministério por eleições feitas por ele mesmo, e não pelo Chefe da Oposição, indicado por Pedro II via poder moderador, teria sido permitido que uma facção se perpetuasse no poder, com as sequelas de revoltas e golpes de Estado já tão comuns na América espanhola, e tão desprezados pelos estadistas do Império. A presença do Poder Moderador permitiu a alternância no poder, fator indispensável ao nosso amadurecimento político, preparando o caminho para a plenitude democrática.

    A chegada extemporânea da república, sem razões de fundo mais sérias, motivada por interesses de grupos, em especial dos militares, que se diziam discriminados na lentidão dos avanços de suas carreiras face ao que ocorria com a burocracia civil de formação jurídica, causou um terremoto político. Um país com quase quatro séculos de tradição parlamentar, a julgar pela forma com que funcionavam as câmaras municipais desde os tempos coloniais, com eleições trienais regulares,em que o vereador mais votado se tornava o prefeito, se viu de repente enquadrado num modelo presidencialista mal copiado dos EUA, onde a tradição parlamentar inglesa manteve seu peso histórico.    

    A percepção de que o Brasil era diferente em sua organização político-institucional ficou patente na época pelas declarações de três presidentes latino-americanos ao tomarem conhecimento do golpe militar republicano de 1889. A melhor declaração, que resume bem as dos outros dois, foi a do presidente venezuelano Juan Rojas: “Pronto, lá se foi a única república, de fato, da América Latina”. E não se trata de uma frase de efeito.   

    Alan Ryan, autor do excelente livro “On Politics”, ainda sem tradução em português, nos informa que poucos países são tão res publicanos quanto a Inglaterra a despeito de ser uma monarquia. Era o caso brasileiro: respeito ao dinheiro público e firme controle civil sobre os militares. Perdidos estes dois pilares, o Brasil perdeu rumo desde 1889 até hoje. E as incertezas continuam.

    Nota: Digite no Google: “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”.  Entrevista minha com mais de 22 mil visualizações.

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