Alan Moore: mago dos quadrinhos mostra sua veia insólita
O escritor e roteirista britânico Alan Moore se consagrou como um dos principais nomes da história dos quadrinhos com obras seminais como Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Batman: A Piada Mortal e Monstro do Pântano. No entanto, desde muito cedo, em sua carreira, ele externou contrariedade em relação ao mecanismo predatório da indústria de quadrinhos, abominou as adaptações cinematográficas de seus trabalhos e foi paulatinamente se voltando contra o mainstream cultural.
O autor, que já havia publicado os romances Voice of the Fire (1996), Jerusalém (2016) e o poema épico The Mirror of Love (2003), encontrou na literatura um refúgio para sua veia experimental sufocada pela lógica perversa do mercado. Sua primeira coletânea de contos, Iluminações, acaba de ser publicada no Brasil pela editora Aleph e é uma excelente porta de entrada para a prosa do “bruxo de Northampton”.
O volume traz algumas histórias inéditas e outras que já haviam sido publicadas desde 1987 em revistas e antologias. A abrangência cronológica também mostra uma larga amplitude temática e estilística por parte do Moore escritor, o que não surpreende quem acompanhou seu trabalho como quadrinista.
Nas nove narrativas reunidas em Iluminações, Moore manipula com destreza e lucidez o campo semântico das palavras empregadas para potencializar as impressões e sensações provocadas pelas metáforas que proliferam por suas páginas, sempre intensamente perpassadas pela fantasia e, por vezes, pelo horror cósmico. Com essa mescla, Moore não esconde as influências da verborragia de H.P. Lovecraft, William Blake e Thomas Pynchon, da geração beat e da new wave da ficção científica.
O conto que abre o volume, Lagarto Hipotético, mostra como a opressão pode se fantasiar de amor em um relacionamento abusivo. Na trama, que se passa em uma espécie de prostíbulo mágico, dois personagens andróginos se envolvem e se mesclam, quase como se fosse uma releitura literária do clássico filme Persona (1966), de Ingmar Bergman. O romance tóxico tem seu desfecho funesto compreendido apenas por uma personagem treinada para servir sexualmente a feiticeiros, cuja mente cirurgicamente fragmentada é incapaz de se comunicar para não comprometer os segredos sórdidos de seus clientes, o que faz dela uma testemunha silenciosa da tragédia que jamais será desvelada.
TEMPO. Nem Mesmo Lenda imagina um ser humano que vive em ordem cronológica reversa, da morte para o nascimento, lidando com um grupo de excluídos sociais que se reúnem para investigar a existência do sobrenatural. Em Leitura a Frio, Moore demonstra sua influência de Edgar Allan Poe com uma história fantasmagórica afiada envolvendo um médium charlatão como os que se aproveitam de pessoas enlutadas e vulneráveis. Já em O Estado Altamente Energético de uma Complexidade Improvável, o autor imagina a ascensão e queda de uma sociedade nos instantes que antecederam o big-bang.
Por mais de uma vez, as personagens sobrenaturais de Moore sugerem que a percepção humana não passa de uma aproximação do mundo real, um mecanismo de defesa que evoluiu para priorizar a sobrevivência em detrimento da precisão. Desse modo, os contos nos levam à conclusão de que sua escolha, por retratar o mundo pelos olhos da magia, é tão precisa e verossímil quanto qualquer outra e que a fantasia nada mais é do que um aparato de representação do mundo para a humanidade. Não por acaso, Moore recebeu o apelido de “mago dos Quadrinhos” ou “bruxo de Northampton”. Para ele, a arte é literalmente uma forma de magia e o artista é o que há de mais próximo de um xamã na sociedade contemporânea. Talvez venha dessa noção sua revolta contra a indústria cultural.
Embora tenha sido fundamental para o amadurecimento do gênero de super-heróis nos anos 1980, Moore dedica-se, quando aborda esse tema na literatura, a construir algo que fica entre a negação e a sátira desse fenômeno de massa. Nesse sentido, a novela que ocupa metade do volume, O Que Se Pode Saber a Respeito do Homem-Trovão, faz de Iluminações uma antítese de sua carreira, um anti-Alan Moore. Diferentemente do que ocorre na física, em que matéria e antimatéria se aniquilam, o autor consegue enriquecer ainda mais o seu legado a partir da própria negação.
HERÓI. O Que Se Pode Saber Sobre o Homem-Trovão, um conto com as dimensões de um romance (quase 300 páginas), é dividido em capítulos curtos, sob ordem cronológica não linear, com alternância de pontos de vista e gêneros textuais diversos. A trama estabelece um panorama de quase um século da indústria de quadrinhos, desde seu início obscuro ligado à máfia, que controlava as empresas de distribuição que transportavam gibis (e bebidas) durante a Lei Seca, até a pandemia, que trouxe dificuldades financeiras e logísticas para as editoras de Hqs.
A narrativa mescla situações reais e inventadas, sempre usando nomes fictícios, mas facilmente reconhecíveis para os iniciados no mundo dos quadrinhos pelos eventos relatados. Ali estão retratados heróis (Homem-Trovão/Super-Homem, Rei Abelha/Batman, Sr. Oceano/Aquaman), pessoas (Sam Blatz/Stan Lee, Joe Gold/Jack Kirby) e empresas (American/DC, Massive/Marvel) reais. Cada trecho usa um registro textual diferente, como gravações de sessões de terapia, entrevistas, interrogatórios, fóruns de internet e instruções de um roteirista para um quadrinista, demonstrando a virtuose formal de Moore.
A narrativa mostra como essa indústria – que, apesar da pujança econômica recente, para Moore está moribunda – vem enfrentando dificuldades criativas pelo fato de, nas últimas décadas, ser tocada por fãs transformados em profissionais, e não por artistas genuínos, dotados de ideias originais. A novela mostra que os artistas, como Jack Kirby, Joe Schuster e Jerry Siegel, vinham de estratos sociais mais baixos e eram explorados, espoliados e silenciados pelas corporações, sem receber um pagamento decente pelas suas criações, tão lucrativas para essas empresas. Com a ascensão das convenções de quadrinhos, fãs de classe média sem talento algum passaram a alçar cargos nas editoras e estancar a criatividade no gênero.
Moore narra episódios marcantes da vida do fictício Worsley Porlock, o mais próximo que se pode chamar de protagonista do conto, desde sua infância infeliz em que as HQs eram um escapismo para o divórcio conturbado dos pais, até sua ascensão a editor-chefe da American Comics em um período de estagnação da empresa. Em meio à trajetória de Porlock, cujo sonho-mor de infância é ser recrutado pelo grupo de super-heróis Amigos do Amanhã, momentos cruciais da história da indústria se alternam com incidentes que ficam entre o macabro e o grotesco, como o artista que esquarteja a namorada que quer forçá-lo a se desfazer de sua coleção de gibis (provável referência ao quadrinista canadense Blake Leibel, condenado à prisão perpétua) ou a perseguição às HQs durante o auge do macarthismo, que culminou em um código de censura prévia moralista que perdurou por décadas.
Em dado momento, dois personagens, Dan Wheems e Milton Finefinger, decidem deixar a indústria de quadrinhos antes que ela os enlouqueça. O subtexto do conto sugere com bastante ênfase que as HQs de super-heróis, com seus enredos maniqueístas que suscitam conforto em um mundo cheio de nuances, são responsáveis, entre outras coisas, pela infantilização do público e pela ascensão de uma extrema direita que busca soluções fáceis em líderes durões – algo natural para Moore em um país como os EUA, “onde, desde o tempo dos pioneiros, ninguém confia em ninguém”. Um dos personagens chega a inferir que o senso moral dos heróis seria a idealização de toda a ética que os estadunidenses não possuem e que projetam em seus personagens. “São nosso espaço negativo, em termos éticos, e ao mesmo tempo são a encarnação mais aparente e supremacista branca do sonho americano.”
Moore chega a comparar por diversas vezes o culto a seres onipotentes como o Homem-Trovão/Super-Homem a “um tipo de religião comercial”, mas afirma que, embora os filmes baseados nesses personagens ainda sejam sucessos de bilheteria, a indústria dos quadrinhos passa por “uma agonia de morte de cores berrantes, um tipo de superextinção”. Essa crise se dá, na visão de Moore e de seus personagens, tanto pela decadência criativa dos fãs-tornados-profissionais (“capazes de apreciar boas ideias, mas nunca de tê-las”) quanto pela incapacidade de renovar o público leitor após uma tentativa desesperada de provar que HQs não são para crianças, perdendo o interesse das novas gerações enquanto os leitores atuais apenas envelhecem e mínguam sua fidelidade mantida por um vício na figura onipotente dos heróis, buscando “recriar a cada lançamento mensal” o “frisson perdido e irrecuperável da própria infância”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.