• Sopa tradicional é conforto para haitianos em meio à crise

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  • 07/02/2023 16:18
    Por *Megan Janetsky, Associated Press / Estadão

    Para Wilfred Cadet, tomar sopa aos domingos equivale a ir à igreja.

    Sentado em cadeiras de plástico ao lado de uma barraca de comida de rua no fundo de um beco, o haitiano de 47 anos sorve uma sopa alaranjada em uma tigela de metal, ao lado de seu filho de 9 anos.

    Haitianos passam carregando recipientes maiores de plástico, ansiosos por uma generosa colherada do caldo que ferve em duas panelas do tamanho de uma pessoa, atrás deles. Feita de abóbora, carne, cenoura, repolho – ingredientes produzidos na ilha – a sopa joumou é um alimento básico da cultura haitiana.

    Em um momento de aprofundamento da crise no país caribenho, ela é um dos poucos motivos remanescentes de orgulho nacional. Até hoje, quando a sopa é mencionada, os haitianos rapidamente abrem um sorriso.

    “É nossa tradição, nossa cultura. Deixa as pessoas orgulhosas. Não importa o que aconteça (no Haiti), a sopa vai continuar por aí”, disse Cadet.

    Durante o período colonial, os escravos foram proibidos de comer o prato picante, e precisavam prepará-lo para os senhores de escravos franceses.

    Mas os haitianos reivindicaram a sopa joumou para si em 1804, quando organizaram uma das maiores e mais bem-sucedidas rebeliões de escravos do hemisfério ocidental. A revolta acabou com a escravidão no Haiti antes de boa parte da região, e o prato ganhou o apelido de “sopa da independência”.

    Em 2021, o mesmo ano em que o país mergulhou no caos após o assassinato de seu presidente, a sopa foi considerada Patrimônio Cultural Imaterial pela UNESCO, o primeiro item da culinária haitiana a ser incluído na lista.

    “É um prato comemorativo, profundamente enraizado na identidade haitiana, e seu preparo promove a coesão social e o pertencimento entre as comunidades”, diz o verbete da UNESCO.

    É tradicionalmente consumida nas manhãs de domingo e no Dia da Independência do Haiti, no começo de janeiro. Nessas datas, às 7h30 da manhã os clientes começam a formar uma fila que atravessa os portões de metal pretos do restaurante improvisado de Marie France Damas.

    Escondida atrás de fileiras de carros estacionados, uma parede de tijolos com um cartaz onde se lê “Todo Domingo: Sopa Joumou” e uma pilha de abóboras locais, Damas trabalha duro com suas duas grandes panelas, como vem fazendo há 18 anos.

    Seu marido se esgueira entre mesas de plástico anotando pedidos, enquanto sua filha corta os legumes atrás dela. É um negócio de família, mas Damas é direta.

    “Eu sou a chefe da sopa”, diz ela com um sorriso.

    O negócio permitiu que ela colocasse os filhos na escola e desse uma boa vida à sua família em um local com algumas das mais altas taxas de pobreza e desemprego na região.

    Para cada haitiano, a culinária significa algo diferente.

    Para Cadet e seu filho, representa um momento de fuga do pandemônio cotidiano da capital do Haiti, Porto Príncipe.

    Também permitiu a Cadet transmitir uma parte estimada da cultura haitiana, em um momento em que ela está se dissipando aos poucos. Comemorações como o Carnaval, que costumavam ocupar o centro das atenções na ilha, desapareceram em razão da grande violência de gangues que está destruindo o país.

    “A violência no país está fazendo todos irem embora, e, com o tempo, vamos perder muitas tradições culturais”, disse Cadet. “Meu filho, claro, (irá). Neste momento ele não gosta do Haiti.”

    Ele espera que, quando o filho for embora, ele se lembre das manhãs de domingo que passaram juntos.

    Para outros, como Maxon Sucan, de 35 anos, é uma forma de se reconectar com sua família e sua casa no interior. Ele cresceu em uma cidade rural no oeste do Haiti, em uma família de agricultores que cultivava exatamente as hortaliças usadas para fazer a sopa.

    Ele chegou a Porto Príncipe 13 anos atrás para sustentar sua família, e trabalha como gerente em uma casa noturna.

    Ele costumava visitar a família seis a oito vezes por ano, mas por causa dos sequestros e do controle das gangues no interior, agora não consegue mais ir para casa. Então, nas manhãs de domingo, ele toma a sopa como fazia quando era criança, e pensa na filha, com quem às vezes passa semanas sem conversar.

    “Ela tem três anos e dói não poder vê-la”, disse Sucan. “(Quando tomo sopa joumou) eu me lembro da minha família”.

    Enquanto se prepara para sair sozinho do restaurante, carregando uma grande vasilha cheia de sopa fumegante, ele faz uma pausa.

    “Quando chegar em casa hoje, vou ligar para ela. E quando ligar, vou perguntar se ela tomou a sopa”, acrescenta.

    *Evens Sanon, jornalista da Associated Press, contribuiu de Porto Príncipe para esta matéria.

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