• Novo ‘Ubu Rei’ é marcado pela violência poética e pelo delírio tropical

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 31/01/2023 08:53
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    Era 1888 e um jovem aluno francês, Alfred Jarry (1873-1907), decidiu escrever, ao lado de colegas de escola, um texto nonsense em que parodiava um grotesco professor de Matemática e seus abusos de poder. O resultado foi a peça Ubu Rei que, encenada pela primeira vez em 1896, impressionou público e crítica ao satirizar a prepotência do método de ensino daquele século 19 por meio de uma história marcada pela revolta contra a família, os pais, a escola e os professores – na verdade, era a revolta contemporânea contra a tradicional civilização europeia.

    “É uma peça que se tornou ícone do Teatro Moderno e influenciou movimentos como Surrealismo, Dadaísmo e o Teatro do Absurdo”, observa o encenador Gabriel Villela que, fiel à sua estética vinculada às raízes culturais do Brasil profundo, estreou sua versão de Ubu Rei no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, estabelecendo uma ponte que une os clássicos e o contexto do espectador. Para isso, contou com a valiosa ajuda do grupo Os Geraldos, de Campinas, e de seus 14 integrantes.

    Ubu Rei faz uma sátira do poder obtido por usurpação e exercido com tirania, ao apresentar Pai e Mãe Ubu, um casal entregue à barbárie que invade a Polônia e, assassinando o rei, assume o seu trono. “É um prato cheio para nosso grupo seguir o raciocínio de Jarry e ironizar nosso tempo atual, marcado por autoritarismo e vulgaridade”, observa o ator Douglas Novais, que vive Pai Ubu.

    “E, para fazer essa sátira com momentos de paródia, nós nos inspiramos no humor escrachado de Dercy Gonçalves”, explica Villela, que optou pela tradução do original de Jarry feito pelos irmãos Bárbara e Gregório Duvivier (publicada, coincidentemente, pela editora Ubu), cuja versão incentiva o delírio tropical criado pelo diretor ao lado do grupo, apresentando um texto ao mesmo tempo engraçado e marcado por uma violência poética.

    A ação da peça acontece na Polônia, ou seja, “em lugar nenhum”, como Jarry afirmou na apresentação do espetáculo, que estreou em 1896, no Teatro do Louvre, em Paris. Na verdade, o que lhe interessava era provocar a plateia burguesa, confrontando-a com sua própria maldade: homem sem nenhum escrúpulo, além de covarde e corrupto, Pai Ubu assassina o rei Venceslau para usurpar o trono da Polônia. Com a coroa na cabeça, o agora rei Ubu se revela um soberano déspota e incompetente que, depois de praticar uma política catastrófica, é obrigado a fugir de barco para a França, sempre contando com a cumplicidade da inseparável Mãe Ubu.

    Empoderada

    “Em montagens passadas, essa personagem ouve calada a série de xingamentos e impropérios dirigidas a ela pelo Pai Ubu, mas, na nossa, Mãe Ubu é empoderada e responde à altura ou até mais alto que seu companheiro”, comenta Paula Mathenhauer Guerreiro, cuja língua solta e ferocidade ao falar coloca a personagem em um patamar superior.

    E, como já fez em espetáculos recentes, Villela criou números musicais que ajudam a deixar ainda mais evidente o surrealismo da linguagem. “A intenção é provocar uma sensação de vertigem no espectador, confrontá-lo com o extremismo que vê em cena e compará-lo com fatos que acompanha há vários meses”, conta Villela que, auxiliado por Babaya Morais e Everton Gennari, responsáveis pela direção musical e preparação vocal, selecionou 17 canções (de Geraldo Vandré, Raul Seixas, Inezita Barroso, entre outros), interpretadas ao vivo pelos atores.

    “Com a projeção mais acentuada da voz, o elenco consegue dramatizar a letra das canções”, comenta Babaya. “E a percussão também dialoga com a história, privilegiando-a”, acrescenta Gennari, que comanda uma inusitada e bela homenagem a Miriam Batucada, com os artistas tirando som de caixas de fósforo.

    Armados de tantos recursos, os atores, que interpretam em sua maioria seres desprezíveis, conseguem promover uma inversão estética, ou seja, o feio se torna belo. Pai Ubu, por exemplo, se revela um personagem memorável, cujo desenho dramatúrgico tem o poder de uma charge: é direto, sem desvios psicológicos. É simplesmente um homem pervertido, sem freio ético ou moral mas, ironicamente, carismático e sedutor.

    Atual

    “E também muito atual – para isso, buscamos informações recentemente publicadas nos jornais que dialogam perfeitamente com o enredo da peça”, conta o diretor. Com isso, tanto é possível ficar mudo diante da série de covas que tomam o cenário no início do espetáculo, triste lembrança das vítimas da covid, como gargalhar com Railan Andrade que, para criar o militar Bostadura, apoiador de quem está no poder, utiliza o tom de voz e a prosódia típica do ex-presidente Jair Bolsonaro.

    Alfred Jarry foi o inventor da “patafísica”, a debochada ciência que investiga o absurdo da vida e exalta a catástrofe moral. “E, para isso, ele se apoia em clássicos para então parodiá-los”, comenta João Fernandes, que vive Bugrelau, o filho do rei da Polônia que tem direito ao trono com a morte do pai. “A primeira cena já lembra Macbeth, com Pai e Mãe Ubu e o capitão Bostadura planejando o assassinato do rei Venceslau – isso durante um banquete escatológico, em que são servidas costeletas de ratão.”

    Com Ubu Rei, que já teve duas montagens memoráveis (em 1985, com Cacá Rosset e Rosi Campos, e em 2017, com Marco Nanini e novamente Rosi), Villela e Os Geraldos mostram que o mundo ainda está repleto de Ubus no poder, desprezando os demais seres humanos.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

    Últimas