• Da calamidade das calamidades de Bolsonaro à esperança esperante de Lula

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  • 01/01/2023 08:00
    Por Leonardo Boff

    Durante os quatro anos da administração do presidente Bolsonaro, o país viveu afetado por  todas as pragas do Egito. Das muitas opções possíveis para algum problema, o presidente geralmente escolhia a pior. Psicótico, era apático face às desgraças infligidas ao povo, particularmente aos mais vulneráveis. O auge de seu orgasmo psicótico foi atingido quando proibiu água, vacinas e remédios aos indígenas, tidos por ele como sub-humanos. Por isso, provavelmente, deverá enfrentar um processo de genocídio, já encaminhado pelos próprio indígenas, junto ao Tribunal Penal de Crimes contra a Humanidade em Haia.

    É de todos conhecida a lista das omissões, dos crimes comuns e contra a humanidade, das violações das leis e da Constituição perpretadas por esta figura dia-bólica (que separa contrariamente a sim-bólica que une) de forma continuada e sem qualquer escrúpulo. De passo, cabe reconhecer que, a nossa democracia por ser de baixa intensidade junto com a maioria de suas instituições, não se revelou à altura do desafio antidemocrático e antinacional para enfrentar tais desvarios. Deixemos de lado as atrocidades cometidas por este presidente, cujo nome deve constar no livro dos crimes cometidos contra o seu próprio povo.

     A gravidade do desastre produzido em todos os campos é de tal magnitude que talvez somente uma reflexão histórica e sociológica não seja suficiente para decifrá-lo. Demanda uma indagação filosofante,coisa que tentei em alguns artigos anteriores.

    Utilizei-me de duas categorias, uma ocidental, a da sombra, e outra oriental a do karma, dialogando entre elas.

    Talvez se faça necessária uma pequena referência aos pressupostos teóricos desta leitura: à física quântica e ao pensamento ecológico moderno nos ajudem a entender  este sinistro fenômeno. 

    Sabemos hoje que todos os seres estão inter-retro-conectados, todos estão envolvidos em redes de relações. Cada relação deixa uma marca entre os seres relacionados e assim surge uma história, a cosmogênese. Experiências dramáticas deixam marcas que, não raro, procuramos recalcar, mas que permanecem no inconsciente coletivo. Jung chama isso de sombra. Algo parecido ocorre com o karma. Cada ação deixa uma marca que provoca uma correspondente reação. Tanto Jung quanto o  filósofo japonês Daisaku Ikeda convergem nesta acepção. Em outras palavras, não há apenas a sombra e o karma individual. Eles podem assumir um caráter coletivo presente no substrato e no inconsciente de cada povo.

    Voltando ao nosso tema: somos herdeiros de uma tormentosa história de sombras: a do genocídio indígena, a colonização que nos impedia possuir um projeto próprio, a escravidão, a mais grave, que reduziu pessoas humanas a escravos e usados como animais na produção, sombra de nossa república e democracia frágeis que nunca foram includentes, pois a conciliação das classes endinheiradas nunca fizeram um projeto nacional para todos, apenas entre elas com a exclusão das grandes maiorias de negros, pobres, indígenas e outros. Essas sombras desumanas trabalharam no inconsciente coletivo, provocando quilombos e revoltas, todas elas exterminadas a ferro e fogo para manter as vantagens “de elite do atraso”(Jessé Souza). Elas trabalharam também no inconsciente das minorias endinheiradas, geralmente na forma de medo  e insegurança. Ao dar-se conta de que as sombras das classes humilhadas começaram a ganhar força história a ponto de terem eleito um dos seus representantes à presidência, Lula, logo foram por todos os meios rebaixadas, reprimidas ,combatidas até cortar-lhe o caminho por um golpe civil-militar em 1964 de, sob outra forma, repetido em 2016 com o impeachement  Dilma Rousseff. As motivações eram as mesmas: garantir seu poder e fortunas.

    Na pessoa medíocre, sem projeto pessoal nenhum e manipulável estas classes encontraram o representante ideal que precisavam. Elegeram o atual presidente, sempre sustentado por elas, pois, com sua economia ultra-neoliberal, aliada a uma política de extrema-direita, acumularam, apesar da pandemia do Covid-19, como nunca antes na história. Fizeram de tudo para garantir-lhe a reeleição (figurativamente, fizeram-lhe comprar a arena de futebol, comprar o time, comprar  os gandulas, comprar o juiz, e ainda assim perderam). Há uma força maior que a maldade arquitetada. 

    A força kármica (abstraindo as muitas reencarnações) segundo Ikeda impregna com sua sombra a história e as instituições, positiva ou negativamente. Arnold Toynbee que entrevê um longo diálogo com Ikeda, prefere outra categoria e não a kármica, ao dizer que a  história carrega um próprio peso que são os fracassos e sucesso de um povo. Ele gera também uma sombra no inconsciente coletivo que se projeta nas redes sociais e conforma o destino de um povo.

    Voltando ao tema em tela: com o atual governo tivemos que pensar sob o peso de nossas muitas sombras sombrias que se expressavam pelo ódio, pela mentira, pelas fake news, pela distorção da realidade. Ganhou corpo na figura sinistra do presidente, cuja megasoma tinha o poder de  suscitar e animar a sombra coletiva de um povo já fragilizado. Criou um um campo kármico ou forjou o gabinete do ódio e todas as formas de obscenidades políticas e éticas.

    O destino quis que essa insensatez, cujo projeto era levar-nos ao mundo do pré-iluminismo, pois esse promovia a escola para todos, os direitos humanos e as liberdades modernas, avanços civilizatórios, sistematicamente negados pelo bolsonarismo.

    O Brasil foi submetido ao seu maior desafio havido em nossa história. Foi humilhado internamente e envergonhado externamente. 

    Mas nunca esmoreceu a esperança, aquele motor interior, maior que a virtude, que nos faz nunca desistir, que nos sustenta nos enfrentamentos e nos faz levantar quando caídos. Esse princípio-esperança nunca morre porque é ele o vigor secreto de toda vida que recusa morrer e sempre reafirma a força intrínseca da vida, nos força a rasgar caminhos novos e mundos “ainda não experimentados” (Fernando Pessoa). O esperançar de Paulo Freire e a esperança esperante, que nunca desistem, sempre insistem e criam a condição histórica para que a utopia viável se torne realidade. Passamos pela prova. A magna calamidade de Bolsonaro foi vencida pela esperança esperante de Lula. Temos esperança de que o novo presidente com a equipe de excelência que articulou, possa refazer o que foi destruído e, muito mais, abrir rumos novos, bons para nós e para o mundo, pois, pelo Brasil passará, seguramente,  futuro ecológico da vida e da  humanidade. 

    Leonardo Boff escreveu Brasil: concluir  a refundação  ou  prolongar  a dependência, Vozes 2018.

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