A suprema corte, o STF e a defesa da democracia
Mais de década e meia atrás, escrevi um artigo sobre os procedimentos internos em questões delicadas tratadas pela Suprema Corte americana e o nosso STF. Era sobre a integração racial nas escolas, que pôs abaixo a doutrina canhestra do “iguais, mas separados” que regulava as relações segregadas entre brancos e negros, desde 1857, nos EUA. Quase um século depois, em 1954, na primeira votação interna, sem que o grande público soubesse, deu um 5 a 4 favorável à integração nas escolas públicas. Por se tratar de uma decisão histórica sobre se a democracia americana valia para brancos e negros, seus membros fizeram várias reuniões internas até chegar ao 9 a 0, tornada pública.
É provável que haja algo parecido no STF, mas, pelo jeito, não fazem o teste internamente, numa votação simulada, entre os ministros, para verificar qual seria o primeiro resultado. Surgem então decisões do tipo 6 a 5 em que os ministros não se perguntam se é absurda. E sobre seu impacto junto à opinião pública. Um triste exemplo foi a decisão a respeito da redução proporcional de salário e jornada a ser aplicada no setor público.
Antes de mais nada, já é estranho que uma decisão como essa tivesse que ser objeto de exame do STF. Se todos somos iguais perante a Lei, deveria também ser válida para o setor público, já que no setor privado ela vinha sendo adotada sem obstáculos legais. Dado que a empresa privada não tinha condi-ções de continuar a pagar o salário integral de seu funcionário, era melhor, por exemplo, reduzir a jornada e o salário à metade, ao invés de despedi-lo e deixá-lo na posição de ter sua remuneração zerada. Puro bom senso.
Não foi o que aconteceu. O STF analisou a questão e tomou a pior decisão
possível: a redução proporcional de salário e jornada no setor público passou a ser inconstitucional. Mas como, se no setor privado já tinha sido adotada?! Poderiam mesmo, como gostam de fazer os ministros, modular a decisão até 50%. Ou seja, o funcionário público poderia ter salário e jornada reduzidos até a metade, não mais. Mas, não. Era inconstitucional, sem se perguntarem antes se criar duas classes de cidadão não o era. Quem trabalhava no setor público virou cidadão de primeira categoria e o do setor privado, de segunda.
Uma das ministras, em seu voto, chegou mesmo a sugerir que a jornada poderia ser reduzida, mas o salário não. Ela sequer se deu conta de que se algum servidor tivesse sua jornada reduzida à metade, e continuasse a receber o valor integral, ele estaria ganhando o dobro por hora trabalhada! Como faz falta um bom economista ao lado da ministra para lhe explicar o completo contrassenso de pôr isso, em letra de forma em seu voto, evitando pagar o mico diante de qualquer pessoa que soubesse fazer conta.
Essa votação por 6 a 5 revela ainda a completa falta de sensibilidade dos 6 ministros que votaram a favor da inconstitucionalidade diante da necessidade de cortes dos gastos públicos tão necessários ao equilíbrio dos orçamentos de municípios, estados e até da União. Prefeitos e governadores criticaram seve-mente essa decisão. É fato notório os gastos excessivos com funcionalismo. Pior: perderam a oportunidade de alavancar a elevação da baixa produtividade do setor público sempre apontada por especialistas. O comportamento do funcionário mantido com vencimentos integrais mudaria significativamente para não ir para o bloco dos de meio expediente. Óbvio assim.
Mas a coisa não para por aqui. Juristas da competência de um Modesto Carvalhosa ou de um Ives Gandra Martins insistem no fato de que o STF tem extrapolado suas funções constitucionais invadindo áreas de outros poderes. E acaba atendendo a pleitos de pequenos partidos mais interessados em tumultuar a cena política do que preservar o interesse público.
Talvez o mais grave seja o que vem ocorrendo nos últimos meses em que o ministro Alexandre de Moraes vem tomando decisões inconstitucionais sem que os demais membros do STF lhe puxem as rédeas. Seria ocioso citar vários juristas de renome e mesmo jornalistas que batem na tecla de que o judiciário não pode acumular poderes do executivo e do legislativo. E muito menos bloquear contas bancárias sem o devido processo legal com a desculpa que seus titulares estariam veiculando fake-news. Ou ameaçando a democracia.
Em especial num momento em que, antes mesmo da aguardada posse de Lula, ele, repetidamente, diz que vai implantar o controle social dos meios de comunicação. Essa conversa revela pretensões ditatoriais. E temos razões concretas para acreditar nisso. O governo é que vai decidir o que o povo deve ou não deve saber. Quando isso acontece a liberdade de expressão e imprensa deixa de ser um direito do cidadão garantido pela constituição.
A disposição do sr. Lula vai além. O desmonte das privatizações acoplada às mudanças da Lei das Estatais, cujo período de quarentena cairia de três anos para um mês, evidencia a intenção de ocupar politicamente cargos nas estatais, permitindo a volta da grossa corrupção dos tempos do PT no poder. Romper o teto de gastos vai na direção de abrir caminho para a volta da inflação, que levamos décadas para controlar. A real defesa da democracia inclui respeito pelo dinheiro público e controle da inflação, o pior imposto que pode ser jogado nas costas da população mais pobre.
Jornais como O Globo, Estadão e a Folha de São Paulo, apoiadores da eleição de Lula, e seus articulistas como Miriam Leitão e Vera Magalhães, dentre outros, parecem ter acordado diante de um futuro venezuelano. Lula, em duas semanas, desmontou o que seria uma política econômica responsável. Parece mesmo ter aderido à proposta de José Dirceu de que não basta ser governo, é preciso tomar o poder para fazer a lambança tipo Cuba, Venezuela e Nicarágua. Pelo jeito, o bem-estar do povo não é a prioridade da esquerda latino-americana. Tem cara exatamente disso. E, até agora, é.
(Às leitoras e leitores, meus efusivos votos de Feliz Natal e próspero Ano Novo, entre parentes, para simular um abraço que não dá para ser dado pessoalmente).
(*) Assista: “Dois Minutos com Gastão Reis: As estatais e você”: