O artilheiro perneta
Acho muito chato esse negócio. Em toda Copa do Mundo a chorumela contra a seleção brasileira e a competição em si, contra o esporte especificamente e certos ídolos em particular. Como se fosse possível despregar a alma brasileira do seu esporte fundante. Desde que Charles Miller desceu em São Paulo com aquela bola embaixo do braço, e desde que Friedenreich se tornou o primeiro grande ídolo do esporte, essa combinação atlética e artística de saltos, corridas, malabarismos, fintas, cabeçadas e magia ingressou no coração do país para estabelecer seu castelo permanente.
Sei que a seleção foi usada em mais de um desgoverno para propósitos escusos. Desde gritar gol bem alto para abafar clamores dos torturados, até ajudar governos e planos econômicos a aumentarem créditos na simpatia popular. A ginga de Pelé e Garrincha carimbou no sorriso de JK a consolidação de um período de alegria nacional com Brasília e a Bossa Nova enchendo o país de orgulho. Mas, oras, se até Villa-Lobos cedeu ao uso político que Getúlio dele fez, se o gênio Chico Buarque faz vista grossa e vira artista troféu dos corruptos do PT, por que é que só o futebol tem que pagar a conta? Então, assim como não deixei de apreciar a genialidade de Villa-Lobos e me deliciar com as obras-primas de Chico Buarque, não caio nessa de cuspir no futebol como se ele fosse o pai de todas as nossas mazelas.
Futebol, ao contrário, é um produto cultural a ser admirado, patrimônio afetivo que jamais podemos descartar. Porque é o esporte mais democrático de todos os tempos. Garrincha, um quase aleijado, podia jogar e ser gênio. Osni, o ponta-direita do Vitória e do Flamengo, um quase anão de 1,57 m, podia jogar e ser ídolo. Walter, do Fluminense e do Goiás que, com seus cem quilos, não faria feio como Rei Momo, pode jogar e mostrar grande talento em cada toque refinado na bola. Qualquer um pode jogar futebol. Com meus netos, a divertida pelada reúne este quase ancião que vos fala, a Liaflor, de 6 anos, o Lukman, de 13, mais minha esposa, minha filha e o cachorro da família. O paredão dos fundos joga pros dois lados, pois com ele se pode tabelar. Quando na escola, tive um talentoso colega que jogava e não tinha uma das mãos e a outra sem todos os dedos. Outro não tinha uma perna, e jogava de muleta, dando saltos incríveis para cabeceios certeiros de artilheiro perneta. Estive em times com gordos e magros, com altos e baixos, com deficientes e saudáveis.
E joga-se em qualquer lugar. Na areia da praia. Na calçada. No paralelepípedo. No chão de terra batida. Na grama. Até na ladeira. Jogávamos, quando eu era menino, no Pedrão, o campo no meio de uma floresta, que tinha um quarto de piso de capim que nossos pés descalços aparavam, o resto de terra batida, e o meio do campo coberto por uma rocha imensa, que emergia das profundezas em seus dois metros e tanto de largura e se constituía em adversário a ser driblado, ou parceiro com quem tabelar.
Por isso, me desculpe você que vai resmungar contra esse ópio do povo, que vai lembrar o Temer, o PT, a CBF ladra ou os altos salários do Neymar. Que vai ainda chorar os 7×1. Me desculpe, mas em nome de Charles Miller e Friedenreich, de Garrincha e Pelé, de Zico e Júnior, de Romário e Bebeto, de Ronaldo e Rivaldo, de Lukman e Liaflor, e acima de tudo, do Pedrão, do jogador anão e do artilheiro perneta, eu vou torcer. Porque se deve honrar um tal alicerce da alma de um povo.
denilsoncdearaujo.blogspot.com