Gal Costa e os fãs que não querem dizem adeus
Devia ser um adeus rápido. A fila, como diziam os policiais, tinha que ter fluxo, sem pausas para lamentos ou contemplações que levassem mais de dois minutos. O corpo de Gal Costa, miúdo sob o véu branco, era visto de uns 20 metros de distância, entre dezenas de coroas de flores enviadas por Lula e Janja, Jorge Benjor, Daniel Filho, Boninho, familiares e amigos. Ao lado do caixão colocado sobre um tapete vermelho, em um cercado com cadeiras reservado a pessoas autorizadas pela família, o filho Gabriel era abraçado por muita gente. Buscados pelos jornalistas, Lúcia Veríssimo, Serginho Groisman, Nizan Guanaes, Zélia Duncan, Bela Gil e Zé Maurício Machline sofriam a perda de uma Gal amiga com quem já não podiam mais sorrir. Apressados pelos policiais, Telma Aparecida, Marisa Fernandes, Antonio da Paz, Givanilda da Silva, Leuda Martins e Débora Laurinda não choravam talvez porque não sentissem exatamente uma perda. Eles só queriam agradecer. “A morte de Gal não muda a nossa relação”, disse Marisa.
Qual relação? Marisa, 70 anos, é historiadora. Saiu de São Bernardo do Campo cedo para chegar ao velório o quanto antes. Veio sozinha, de branco, com o coração apertado e a imagem de um dia inesquecível. Ela era uma garota de 18 anos, expulsa de casa pelos pais por ter se apaixonado por outra garota na escola, quando viu Gal em um teatro no Bexiga, em São Paulo. “Eu não sabia nem que havia nome o fato de se gostar de alguém do mesmo sexo, mas Gal mostrou que podíamos.” Mais tarde, Marisa se tornou ativista histórica de causas LGBT+ em plena ditadura, e lá estava Gal de novo, desamparada, longe dos exilados Gil e Caetano, mas acalentando seus medos. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, dizia em Divino Maravilhoso. “Vibrei quando ouvi isso”, lembra Mariza.
Givanilda, 44 anos, é evangélica e mantém um fã clube digital da atriz Lúcia Veríssimo. Ela já havia pegado a fila três vezes para ver Gal, e, dizia, faria isso até o horário do enterro. Seu agradecimento era sobretudo por duas canções que a fizeram ser “guerreira e patriota”. Patriota? “Claro, você não percebeu que Gal canta o segundo hino nacional brasileiro? O que é ela cantando ‘Brasil /mostra tua cara /quero ver quem paga / pra gente ficar assim.'” E guerreira? “Sim. Eu ouço Um Dia de Domingo sempre, e usei essa música para ser o tema de meu aniversário de 40 anos.” Mas o que tem de guerreira nesta canção? “Veja a letra. O que é um dia de domingo pra você? Meu, Domingo é renovação, é o que de melhor podemos querer. ‘Ver o Sol amanhecer / E ver a vida acontecer / Como um dia de domingo.” Antes de partir para pegar a fila de novo, Givanilda disse temer a ausência de Gal. “Eu tenho medo de viver em um mundo sem ela.”
Leuda Martins, católica, 45 anos, lembra que estava sendo maltratada por uma prima. Eram tempos difíceis, sem dinheiro, sem sonhos, sofrendo violência doméstica e vivendo de favores. Era noite quando ela saiu de casa e se sentou em um muro, sozinha, quando veio da vizinha uma música que pareceu transpassá-la. Era Dez Anos, com Gal dizendo algo que parecia ser apenas para ela. “O sono fechou meus olhos, me adormecendo / Senti tua boca linda murmurar / Abraça-me por favor minha vida / E o resto desse romance só sabe Deus.” Não havia clima para paixões em Leuda, mas a paixão de Gal a tirou de onde estava e a fez se apaixonar também. “Eu nunca me esqueci disso.”
Antonio da Paz e Débora Laurinda fizeram cartazes como puderam e saíram para a Assembleia logo cedo. Sentados na calçada à frente, ouviam Força Estranha saindo de um celular. Ele, do interior da Bahia, e ela, do interior do Ceará, contavam praticamente a mesma história. Festa do Interior levavam os dois de volta para suas terras, mesmo vivendo em São Paulo há anos. Antonio tem uma paixão que não sai da cabeça. “Eu conheci a mulher que ainda amo no forró, dançando com ela Festa do Interior.” Débora ouve falar de amor e se encoraja. “Eu ouço Um Dia de Domingo todos os dias. Foi com ela que conheci meu ex marido.” Mas ela ainda ama seu ex marido? “Não”, ela diz, muito séria. “Mas a música ficou.”