Lula bate Bolsonaro por margem curta e diz que vai priorizar combate à fome
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 77 anos, foi eleito neste domingo, 30, presidente da República do Brasil pela terceira vez. Lula derrotou nas urnas, pela margem mais apertada de votos desde a redemocratização, o atual presidente Jair Bolsonaro (PL). Foi a primeira vez que um presidente não conseguiu se reeleger.
Com 99,99% das urnas apuradas, o petista obteve 60,3 milhões de votos (50,9% do total), ante 58,2 milhões de votos recebidos pelo candidato à reeleição (49,1% do total). A chapa eleita – que tem como vice o ex-governador paulista Geraldo Alckmin (PSB), de 69 anos – vai assumir em 1.º de janeiro de 2023.
O triunfo de Lula se deu em um cenário de forte divisão política da sociedade e representou uma significativa recuperação pessoal. “Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis, somos apenas um único povo, uma nação”, afirmou o petista após o resultado, prometendo trabalhar para “restabelecer a paz entre as famílias”.
Cercado pelos aliados, Lula prometeu “enfrentar sem tréguas o racismo e a discriminação”. O “compromisso mais urgente”, disse Lula, é acabar com a fome. Ele também falou que irá trabalhar para recuperar a credibilidade e estimular a entrada de investimentos estrangeiros no País. “Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer, ou que consumam menos calorias e proteínas do que o necessário”, disse. Este será, novamente, o compromisso número 1 do nosso governo.”
Ele também falou sobre a agenda climática, uma preocupação entre líderes estrangeiros, e disse que irá lutar pelo “desmatamento zero da Amazônia”. “O Brasil e o planeta precisam de uma Amazônia viva”, afirmou, prometendo combater toda atividade ilegal e promover o desenvolvimento sustentável.
Lula disse que considera ter vivido “um processo de ressurreição na política brasileira”. O ex-presidente e agora presidente eleito passou um ano e sete meses preso após ser condenado na Lava Jato por corrupção e lavagem de dinheiro no processo do triplex do Guarujá (SP). O líder máximo do PT deixou a cela especial da Polícia Federal em Curitiba em novembro de 2019. Em abril do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou as condenações impostas a ele pela operação, permitindo que disputasse a eleição deste ano.
Nos próximos 60 dias, o Brasil terá o desafio de fazer uma transição sem traumas, com foco único e absoluto no interesse nacional. A travessia governamental está regulamentada pela Lei 10.609 de 2002 e permite que o novo presidente convoque uma equipe de até 50 pessoas para a ocupação de cargos especiais nesse período.
A Lula caberá a significativa tarefa de conduzir o País a um processo de pacificação e retomada do desenvolvimento social e econômico. O Brasil que será herdado pelo ex-presidente tem características muito distintas das de quando ele assumiu há 20 anos, após vencer a disputa de 2002.
LEGISLATIVO
O PT volta ao poder central sob a exigência de fazer um governo mais amplo e negociar com um Legislativo ideologicamente mais hostil. Os partidos de direita, com predomínio das legendas do Centrão, conquistaram a maioria das cadeiras da Câmara e do Senado em disputa. O PL, partido de Bolsonaro, elegeu a maior bancada do Congresso. A sigla terá 99 deputados na Câmara a partir de 2023.
É diante desse Congresso mais à direita e com uma parcela mais radicalizada que Lula terá de governar. A campanha petista não foi capaz, porém, de iluminar as pretensões de uma nova gestão da legenda. Um plano detalhado de propostas ficou na promessa. Apenas faltando três dias para a votação em segundo turno, a campanha do ex-presidente divulgou carta aberta na qual promete combinar “política fiscal responsável” com “responsabilidade social e desenvolvimento sustentável”. Um documento considerado genérico e superficial por agentes econômicos.
Economistas liberais e “pais” do Plano Real se somaram ao esforço pró-Lula no segundo turno: Pedro Malan, Edmar Bacha, Arminio Fraga e Pérsio Arida declararam voto no petista, assim como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A frente pró-Lula na etapa final da campanha, porém, não se formou em apoio à plataforma pouco detalhada do petista ou à sua popular figura. Muitos de seus apoiadores mais notáveis declararam voto crítico em uma união para derrotar Bolsonaro.
Em seu retorno à arena eleitoral, o líder petista se mostrou um político com núcleo duro mais restrito do que nas campanhas passadas. Ele rejeita a tese de que é “um novo Lula” em 2022. A condução de sua campanha, no entanto, evidenciou um Lula mais centralizador e desconfiado. Decisões triviais passavam pela mesa do petista, que continua confiando no seu tino político a ponto de, muitas vezes, ter dispensado as sugestões de seus conselheiros. Apoiadora de Lula após o primeiro turno, a senadora Simone Tebet (MDB) tornou-se a rara voz crítica na campanha petista, ao lado do amigo de longa data do presidente eleito, Paulo Okamotto.
O petista reacendeu ao longo da campanha a suspeita de que, se eleito, investiria em um processo de regulação da mídia. Em diversas oportunidades, Lula fez menções à necessidade de um novo marco regulatório contra o que chamou de “espoliação de meia dúzia de famílias que mandam na comunicação brasileira” e à garantia do “melhor direito de resposta”. O petista falou ainda em “convocar plenárias, congressos, palestras” para a sociedade dizer “como tem que ser feito”, afirmando que essa missão caberá ao Congresso Nacional.
Lula mantém ao seu lado aqueles que foram mais fiéis no período que passou na carceragem de Curitiba. Estão nesta lista, por exemplo, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, os petistas Fernando Haddad (derrotado na disputa pelo governo de São Paulo), Rui Falcão e Aloizio Mercadante. A mulher de Lula, Rosângela da Silva, a Janja, teve protagonismo na campanha e é uma das principais conselheiras de Lula.
ABSTENÇÕES
Até a conclusão desta matéria, Bolsonaro não havia se pronunciado sobre o resultado da eleição. Lula chegou à vitória no segundo turno com uma vantagem menor em relação à primeira etapa de votação. A diferença para o atual presidente caiu de 6,1 milhões no primeiro turno para 2,1 milhões na votação de ontem.
Considerado um ponto potencialmente decisivo para definir a eleição, o índice de abstenção do segundo turno (20,56%) foi menor do que o registrado na primeira etapa (20,95%), contrariando tendência histórica de menor comparecimento na segunda etapa do pleito. O índice também foi inferior ao observado no segundo turno de 2018 (21,3%).
‘NÃO EXISTEM DOIS BRASIS’
Principais trechos de discurso de Luiz Inácio Lula da Silva:
Meus amigos e minhas amigas. Chegamos ao final de uma das mais importantes eleições da nossa história. Uma eleição que colocou frente a frente dois projetos opostos de país, e que hoje tem um único e grande vencedor: o povo brasileiro. Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora. Neste 30 de outubro histórico, a maioria do povo brasileiro deixou bem claro que deseja mais – e não menos democracia. (…)
O povo brasileiro quer viver bem, comer bem, morar bem. Quer um bom emprego, um salário reajustado sempre acima da inflação, quer ter saúde e educação públicas de qualidade. Quer liberdade religiosa. Quer livros em vez de armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens culturais, porque a cultura alimenta nossa alma. O povo brasileiro quer ter de volta a esperança. (…)
A roda da economia vai voltar a girar, com geração de empregos, valorização dos salários e renegociação das dívidas das famílias que perderam seu poder de compra. (…)
A partir de 1.º de janeiro de 2023 vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação. Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do ódio. A ninguém interessa viver num país dividido, em permanente estado de guerra. Este país precisa de paz e de união. Esse povo não quer mais brigar. Esse povo está cansado de enxergar no outro um inimigo a ser temido ou destruído. É hora de baixar as armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a vida. (…)
É preciso reconstruir a própria alma deste país. Recuperar a generosidade, a solidariedade, o respeito às diferenças e o amor ao próximo. Trazer de volta a alegria de sermos brasileiros, e o orgulho que sempre tivemos do verde-amarelo e da bandeira do nosso país. Esse verde-amarelo e essa bandeira que não pertencem a ninguém, a não ser ao povo brasileiro. (…)
Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer, ou que consumam menos calorias e proteínas do que o necessário. (…) Este será, novamente, o compromisso número 1 do nosso governo. (…)
É preciso retomar o diálogo com o Legislativo e Judiciário. Sem tentativas de exorbitar, intervir, controlar, cooptar, mas buscando reconstruir a convivência harmoniosa e republicana entre os três Poderes. (…) A normalidade democrática está consagrada na Constituição. É ela que estabelece os direitos e obrigações de cada poder, de cada instituição, das Forças Armadas e de cada um de nós. (…)
Vamos também restabelecer o diálogo entre governo, empresários, trabalhadores e sociedade civil organizada, com a volta do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Ou seja, as grandes decisões políticas que impactem as vidas de 215 milhões de brasileiros não serão tomadas em sigilo, na calada da noite, mas após um amplo diálogo com a sociedade. (…)
Agora, vamos lutar pelo desmatamento zero da Amazônia O Brasil e o planeta precisam de uma Amazônia viva. (…) Ao mesmo tempo, vamos promover o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica. Vamos provar mais uma vez que é possível gerar riqueza sem destruir o meio ambiente. (…) Não nos interessa uma guerra pelo meio ambiente, mas estamos prontos para defendê-lo de qualquer ameaça. (…)
Todos os dias da minha vida eu me lembro do maior ensinamento de Jesus Cristo, que é o amor ao próximo. Por isso, acredito que a mais importante virtude de um bom governante será sempre o amor – pelo seu país e pelo seu povo. No que depender de nós, não faltará amor neste país. Vamos cuidar com muito carinho do Brasil e do povo brasileiro. Viveremos um novo tempo. De paz, de amor e de esperança.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.