• A herança luso-afro-indígena sempre em pauta

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  • 20/08/2022 08:00
    Por Gastão Reis

    Em artigos anteriores, tenho abordado o tema da colonização portuguesa do Brasil com um olhar diferente. Eu me apoio em novas pesquisas bem fundamentadas e numa visão abrangente que se recusa a ver o Brasil fora de um contexto mundial. Caso contrário, perdemos perspectiva e rumo.

    No domingo passado, 14/08/2022, Jorge Luiz Nobrega, membro do Conselho de Administração do Grupo Globo, escreveu um artigo, no jornal do grupo, acertadamente intitulado “Os portugueses não têm culpa”. A linha geral da argumentação desenvolvida está basicamente correta, mas afloram algumas afirmações que requerem reparos em benefício dos fatos históricos como efetivamente ocorreram.

    Inicialmente, ele resume as colocações habituais sobre a colonização portuguesa. Portugal teria roubado nosso ouro, o que seria, em parte, razão de nossa pobreza. Portugal teria sido sempre um país atrasado, e estaríamos bem melhor se tivéssemos sido colonizados por outros povos mais adiantados. É certo que esta não é a posição ipsis litteris do autor do artigo, mas tais colocações merecem alguns reparos, indo do fim para o início.

    Já tive a oportunidade de ouvir de uma senhora a defesa de termos tido outro colonizador. Curiosamente, seu nome completo escancarava o fato de ser descendente de portugueses. Esse desvio psicológico redunda numa espécie de suicídio histórico de sua própria etnia. Era como se Portugal não fosse digno de ter descoberto o Brasil e de tê-lo colonizado. Numa época, em que a lei do tacape estava vigente no mundo inteiro, ela deveria ter orgulho de pertencer a um povo que enfrentou inúmeras batalhas, sempre em grande desvantagem numérica; e que, com muita coragem e determinação, conseguiu se afirmar. Poderia ter sido riscado do mapa história mundial, mas não foi.

    Quanto à ideia de que Portugal teria sido sempre um país atrasado, um mínimo de visão histórica rebate tal afirmação. Nos séculos XV e XVI, Portugal esteve na vanguarda da grande aventura humana. Qualquer dúvida, basta ler “Conquistadores”, de Roger Crowley, historiador de Cambridge, que usa na capa de seu livro o seguinte subtítulo: Como Portugal forjou o primeiro império global. É óbvio que um país sempre atrasado jamais realizaria tal proeza. Na verdade, era um país considerado adiantado naqueles tempos.

    Quanto ao ouro roubado, em artigo meu, comprovo que o ouro que o Brasil produziu, após a independência em 1822, foi inúmeras vezes superior ao que Portugal nos levou. Portanto, nós mesmos é que demos um fim inapropriado às montanhas de ouro que foi produzido no país nos últimos dois séculos. Isso vai na conta terceirização da culpa, esporte nacional mais popular que o futebol.

    O autor nos informa que herdamos de Portugal uma sociedade desigual e injusta, patrimonialismo, burocracia e outros problemas. A pergunta que ele não se fez é se tais problemas não foram muito mais agravados nesses últimos 132 anos de república. A que regime político, monarquia ou república, caberia a real responsabilidade por essas mazelas? Vejamos.

    O Brasil foi uma exceção em matéria de alforrias, concedidas ou compradas, desde os tempos coloniais, uma raridade no resto do mundo. Por volta de 1780, a capitania de MG era a mais populosa, com 394 mil habitantes. Destes, 174 mil eram escravos. Dos 220 mil restantes, dois terços eram compostos por negros forros que tinham alcançado a própria liberdade. Ou seja, quase 150 mil pessoas livres de origem africana numa população de cerca de 400 mil almas! (Quase 40% do total.) E se foram capazes de comprar a própria alforria, não estavam em situação financeira lamentável. Muito pelo contrário.

    O autor do artigo ressalta, com razão, que as colônias da Inglaterra, da Espanha, da Bélgica, da Itália e da Alemanha, em matéria de crueldade, não foram muito diferentes do ocorrido no Brasil. Mas as muitas alforrias, desde os tempos coloniais, e mesmo no Império, em que 60% da população do Rio de Janeiro já era livre em meados do século XIX, configura um quadro diferente.

    Se o nosso racismo é estrutural, o americano foi visceral, até 1960!, em que os negros eram mantidos segregados em escolas, hospitais, restaurantes, banheiros e da própria vida social. Pior: pouco sobrou da cultura africana em temos de culinária, de religiões de matriz africana (todos evangélicos), ou da música de batuque, mesmo reconhecendo a pujança do jazz, típico de instru-mentos de sopro. Aqui, a alma e a cultura africana fazem parte de nosso dia a dia na comida, na língua, nos cultos africanos, que sobreviveram, a despeito das perseguições. E ainda no sangue miscigenado, ausente no resto do mundo na proporção em que se deu aqui.

    O autor elogia o artigo da historiadora Isabel Lustosa “Que independência foi esta?” (Jornal Valor, 29/07/2022). Ela nos informa que havia certo consenso entre os portugueses de que o Brasil dava prejuízo a Portugal no período joanino aqui. E que a independência nos caiu de madura. Portugal teria sido quem desejou primeiro nossa independência. A autora diz que Manuel Fernandes Thomas, o líder da Revolução do Porto de 1820, era da mesma opinião. O que ela não comenta é que os deputados brasileiros em Lisboa, nesse período, denunciavam a intenção das Cortes de nos reduzir à condição de colônia novamente, de tal forma que todo nosso comércio exterior voltasse a passar por Lisboa, onde seria taxado pela metrópole e reexportado.

    O que escapou a Jorge Luiz Nobrega, e talvez à historiadora Isabel Lustosa, foi o desmonte político-institucional ocorrido com o golpe militar de 15 Novembro. Ao jogar no lixo a tradição parlamentarista do Império, em que a confiança é a pedra angular da sustentação dos governos, adotamos o fatídico presidencialismo, um regime cujo insucesso é patente em toda América Latina desde o início do século XIX, sina da qual escapamos até 1889. O presidencialismo brasileiro, ainda hoje, não satisfaz 80% dos indicadores de qualidade de um sistema político. E por isso não funciona. Eis a tragédia.

    Nota (*): Link para um vídeo meu, “História do Brasil mal contada”,

    gravado no programa DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS:

    https://www.youtube.com/watch?v=eItrRRkiiAU

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