• Mulheres são desdobráveis

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  • 17/03/2018 12:00

    Adélia Prado tem trecho lindo, louvando a dignidade do feminino. “Mulher é desdobrável. Eu sou”. Muito jovem, mandei um livro para Adélia. De iniciante, defeituoso, com a carta em que lhe derretia doçuras. Na confusão dos guardados não sei se acharia a preciosa resposta em que ela encorajava o poeta trôpego a insistir, e agradecia lindamente ao que eu escrevera: “Fiquei toda bonita!”. Não fosse já linda o bastante a poeta de bela alma! Fiquei feliz de dar sorrisos a seu rosto. Façanha doce à memória.

    Adélia tem essa coisa de mulher muito feminina com feminismo de discrição tão tocante quanto militante. Mansa, não apta a embates de certo feminismo grosseiro, machismo às avessas, mas feminista a refletir a condição da mulher, seus sofrimentos, dores e sonhos. Enxergando o homem limitado na imensidão do mundo. Se queixando dele, sim, mas louvando a complementaridade dos gêneros, e tendo a condição feminina como uma alegria de existir. Casada, interiorana e sonhadora, ela desvenda o vigor das simplezas do cotidiano, mostrando encantamento na força da cozinheira jogando milho para as galinhas no quintal, na sensualidade suave que pousa no corpo da católica praticante, repleta de versos do Cântico dos Cânticos, apaixonada por Castro Alves, e nas vezes em que desboca suas fúrias. Mulher completa. Complexa. Barroca, como ela se declarou, lindamente, em modo simples, preciso: “Sou de barro. Sou oca. Sou barroca”.

    Era à Dama de Divinópolis que eu recorreria para homenagear o Dia da Mulher recente. Mas a chuva encharcou, encheu tudo, inclusive a página em que eu escreveria às mulheres. Tinha a intenção de homenagear as tantas mulheres que conheço e que me fizeram e fazem. Minha avó, minha mãe, minha esposa, minha filha, e até minha netinha, ainda tão menina. Homenageá-las reconhecendo nelas essa característica especial detectada por Adélia. Mulheres desdobráveis. 

    Desdobrável é o que foi dobrado, mas resiste e pode ser recolocado na forma original. Coisa de metamorfose. Desdobrável é o que se emprega em vários ofícios e estivas ao mesmo tempo, como quando se diz que “fulano se desdobra em muitos para atender a vários ofícios”. Desdobrável é também, na química, o que pode ser decomposto, separado, identificado em suas múltiplas partes. Assim vejo as mulheres, múltiplas, desdobrando-se. Em mães, filhas, avós, esposas, arrumadeiras, trabalhadoras, empresárias, pregadoras de botão, colo para lágrimas de filho, beiço para sopro de machucado, beijo curativo para testa com galo, abraço de encorajamento para marido inseguro, enfermeiras dando remédio na hora exata, alquimistas preparando delícias culinárias, fadas que põem ordem no caos dos domicílios, geógrafas que sabem o lugar exato das roupas sumidas na casa e das coisas perdidas no mundo, poços de ternura e beleza, moinhos de coragem e persistência, musas de poetas e de guerreiros, vozes de calma na hora da tempestade; quando as vejo, quando as observo, percebo as maravilhas que são essas mulheres, mil-lheres, desdobráveis, adélias, endelices, nilmas, chardelis, marianas, lias, e marias mil, percebo assim, definitivamente, que esta pobre rosa que lhes devotamos no seu dia é presente vergonhoso demais para quem merecia o tempo todo, não só tapetes de lírios, vestidos de crepúsculos, coroas de rubis e céus de diamantes, mas também que tomássemos vergonha na cara e dividíssemos os tantos encargos. Perdoem-nos, mulheres.

    denilsoncdearaujo.blogspot.com

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