• Roberto DaMatta recebe, no Rio, o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra

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  • 20/07/2022 21:10
    Por Roberta Jansen / Estadão

    Entender o Brasil por meio de algumas de suas manifestações culturais mais arraigadas, como o carnaval, o jogo do bicho e o futebol foi o desafio que Roberto DaMatta, de 85 anos, impôs a si mesmo desde o início de sua carreira. Um dos mais importantes antropólogos do País, colunista do Estadão desde 2001, DaMatta tem agora seu trabalho reconhecido pelo prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, que ganhou pelo conjunto da obra. O intelectual recebe a honraria nas comemorações dos 125 anos da ABL, nesta quarta-feira, 20. O prêmio chega a poucos dias do aniversário de DaMatta, que completará 86 anos no próximo dia 29.

    “Quando Merval (Pereira, presidente da ABL) me ligou dizendo que eu era o vencedor do prêmio deste ano, puxa vida, fiquei muito feliz, veio na hora certa, como um presente para o meu aniversário”, disse. “E é o prêmio do patrono da academia (Machado de Assis), concedido no dia da comemoração dos 125 anos da ABL, uma ocasião muito feliz, sou muito grato.”

    O Prêmio Machado de Assis já foi concedido a Graciliano Ramos (1892-1953), Érico Veríssimo (1905-1975) e Guimarães Rosa (19098-1967), entre outros. Ana Maria Machado, que também já recebeu a mesma premiação e foi encarregada de entregá-la a DaMatta, elogiou o agraciado.

    “A obra dele se impôs, ele é um pensador do Brasil, um sujeito que pensa a sociedade a partir de manifestações culturais muito concretas para os brasileiros. Ele observa o dia a dia e a vida a seu redor para pensar o Brasil.”

    Ana contou que resolveu ler a obra de DaMatta depois que soube que o antropólogo, em 1986, prestes a se mudar para os EUA, depois de perder passaportes, traveler checks e passagens em um assalto, deu uma entrevista sobre o caso. Nela, teria dito estar preocupado, porque era filho de santo, tinha proteção, e a pessoa que pegara suas coisas poderia ser muito prejudicada. Segundo Ana , foi tudo devolvido ao pesquisador. “Taí uma pessoa que entende os brasileiros ” , pensou ela, segundo relatou.

    Formado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), DaMatta fez uma especialização em antropologia social no Museu Nacional. Depois, cursou mestrado e doutorado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Seus estudos sempre foram voltados para o País. Entre suas obras mais importantes, estão Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayé, Carnavais, malandros e heróis, Águias, burros e borboletas: um ensaio antropológico sobre o jogo do bicho, A bola corre mais que os homens: duas Copas, além do ensaio Você sabe com quem está falando?.

    Em sua obra, DaMatta mostrou especial interesse pelas peculiaridades brasileiras. Entre elas, a hierarquização da sociedade, disfarçada de proximidade; o carnaval como ritual que mistura ricos e pobres, suspendendo regras e diferenças; a dicotomia entre o coletivo, simbolizado na rua, e o privado, sintetizado no lar; o fascínio pela esperteza da malandragem. Para DaMatta, para entender um povo é necessário conhecer os seus ritos e seus mitos.

    “Ao estudar (…)”, escreveu em “Carnavais, malandros e heróis”, “pretendo abordar esse povo nas suas esperanças e perplexidades, pois sempre me impressionou a conjunção de um povo tão achatado junto a um sistema de relações pessoais tão preocupado com personalidades e sentimentos; uma multidão tão sem rosto e sem voz, junto a uma elite tão rouca de gritar por suas prerrogativas e direitos; uma intelectualidade tão preocupada com o coração do Brasil e, no entanto, tão voltada para o último livro francês; uma criadagem que passa tão despercebida e patrões tão egocêntricos (…)” Segundo ele, o povo brasileiro o intriga “na sua generosidade, sabedoria e,sobretudo, esperança”.

    Para o antropólogo, o atual momento do País é muito rico do ponto de vista antropológico, ao deixar ainda mais nítidos alguns traços negativos dos brasileiros.

    “A polarização e a decepção com o PT fizeram com que a gente elegesse esse capitão, que é um homem errático. Acho que o eleitor pensou que, o que não pode ser resolvido na diplomacia, pode ser resolvido na base da porrada”, resume o antropólogo. “E essas propostas do coração do Brasil foram disseminadas; o machismo, a ideia do bem contra o mal, a condenação ao aborto, o antifeminismo, o preconceito contra negros e indígenas. Bolsonaro se apresentou defendendo assuntos que eram tabus.”

    Para DaMatta, Bolsonaro “desmascarou a sociedade brasileira, mostrando quem realmente somos”.Segundo ele, “Essa maneira de exercer a Presidência (que no Brasil ainda é um papel de majestade), junto com a facilidade cada vez maior da comunicação, tornaram cada vez mais nítidas essas questões que não discutimos em profundidade”, conclui.

    DaMatta destaca a importância da atual facilidade de comunicação no processo que chamou de “desmascaramento da sociedade brasileira”.

    “Com essa facilidade de comunicação atual, temos uma visão instantânea da realidade muito mais nítida do que jamais tivemos”, afirmou. “Um vídeo curto nos mostra um negro sendo preso por ser negro, mulheres sendo agredidas.” A pandemia, diz o antropólogo, agravou ainda mais a situação.

    “Todas as ideias erradas e as teorias mais retrógradas foram defendidas não apenas pelo ministério, mas também por um presidente que não acredita na vacina. Uma coisa de louco”, afirma. “Meu cérebro derretia, escorria pelo nariz e saia pelos ouvidos.”

    DaMatta afirma, no entanto, que a atual situação pode ser positiva para o País a longo prazo ao provocar discussões mais aprofundadas sobre os temas.

    “O que está acontecendo agora, é o que chamamos de ironia na literatura; efeitos inesperados de determinadas ações”, compara. “E quem trabalhou muito bem com esse conceito foi Machado de Assis, que obviamente tinha consciência de tudo isso até por conta de sua origem e cor. Muitos de seus contos apontam com muita nitidez os problemas.”

    Ao voltar ao Brasil depois do mestrado e doutorado nos Estados Unidos, o antropólogo trabalhou no Museu Nacional até 1986, quando aceitou um convite da Universidade de Notre Dame, em Indiana, nos EUA, para lecionar. Ele só voltou ao País em meados dos anos 2000, quando começou a dar aulas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Agora, diz, encerrou sua carreira acadêmica e pensa seriamente em começar a escrever ficção.

    “Tenho algumas ideias malucas para chocar os leitores”, garante.

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