• Crônica do Ataualpa: Jardinar

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  • 12/06/2022 13:54
    Por Ataualpa Filho

    Semear. Plantar. Colher. Jardinar o ambiente em que vivemos. As palavras também são flores que precisam ser cultivadas. Tenho me dedicado ao ofício das crônicas e dos poemas. Agora estou me preparando ficcionalmente para enveredar-me em um romance. Sei que é um risco expor o que se pensa. Mas tenha a certeza de que escrevo com o cuidado de não usar uma linguagem tóxica. Prefiro a ternura ao ódio.

    A leitura é um ato de prazer, não de encolerização, pois se trata de uma ação descoleirizante. Desde os meus tempos passados, um dos meus passatempos consistia em destravar língua. Conheço bem a ansiedade que leva à gagueira. O controle da respiração me possibilitou pensar antes de abrir a boca.

    Flechas e palavras quando atiradas não voltam aos arcos. No deixar o dito pelo não dito, existem as probabilidades das interpretações errôneas. Já disse que não gosto das meias palavras, procuro colocar os pingos nos is. O xis da questão deve ser encontrado por raciocínio lógico. O Bem deve ser sempre a nossa diretriz. E, por pensar assim, tento encontrar as linhas que determinam as diferenças entre caridade e responsabilidade social. O voto não é ato de caridade, o pagamento de impostos também não é caridade. Quando reivindicamos trabalho, saúde, educação, transporte, segurança não estamos pedindo favor.

    A fome é uma agressão, uma desumanidade. O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil declarou que, aproximadamente, 33,1 milhões de brasileiros passam fome. Não é por meio de ações caritativas que essa população que vive abaixo da linha da pobreza vai sair das péssimas condições em que vive.

    Gestão pública não é filantropia. A omissão do Estado tem consequências irreversíveis. A política que se limita à redenção de danos não cabe no vocábulo da moda: proatividade.

    Estamos partidos, divididos, enfraquecidos. Quando mais as desigualdades se projetam, mais se evidenciam ações altruístas, movidas pela sensibilidade humana. Porém não são suficientes para tirar a população da penúria.

    Louvamos as ações das organizações não governamentais sérias, das igrejas, das instituições filantrópicas. Contudo, ainda estamos longe de estabelecer mudanças significativas em favor das populações necessitadas. A estrutura da política partidária do país é muito onerosa. O fundo eleitoral deste ano está em torno de R$ 4,9 bilhões. O retorno desse dinheiro para o bem comum é mínimo. O bolo é fatiado entre poucos…

    Há um outro problema no sistema assistencialista que considero grave: a perda da consciência cidadã. A invisibilidade não lhe tira somente o cpf, mas também a dignidade. Com a hombridade enfraquecida de tanto estender a mão, o cidadão se sente desmotivado para lutar por melhores condições de vida. Entra no “salve-se quem puder” e vai perdendo a noção de coletividade, tão importante na organização comunitária.

    – Quantas pessoas ficam cabisbaixas na fila da Caixa? – Nela, há algum futuro?…

    Todos nós já ouvimos o ditado popular que fala do “peixe” e do “ensinar a pescar”. Mas nele, não há alusões à organização da sociedade para distribuição ou comercialização do pescado, nem das condições de vida dos pescadores.

    Já estive aqui falando do samaritanismo que não se trata de uma religião, nem de uma ideologia, mas sim da prática do amor sem paixão, do servir sem olhar a quem. Volto a tocar nesse assunto, porque me lembrei do nome da operação realizada em São Paulo para dispersar os dependentes químicos da Cracolândia. Batizaram-na de “Operação Caronte”. Por essa denominação, é possível deduzir que não havia nada de samaritano. “Caronte” é um personagem da mitologia grega, o barqueiro de Hades, que transportava as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que separavam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Nessa dispersão que a operação efetuou, um morador em situação de rua foi ferido mortalmente…

    Às vezes, confundem “cidadão de bem” com “cidadão de bens”. Precisamos jardinar o espaço em que vivemos. As flores precisam nascer no coração dos homens para que haja paz na Terra. Que os “cidadãos de bens” sejam também “cidadãos de bem” e que estejam cientes da importância das ações solidárias e da justiça social.

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