Milton Gonçalves contribuiu para elevação artística das obras em que trabalhou
Um operário engajado e uma travesti são os dois personagens que marcaram a carreira do ator Milton Gonçalves. O primeiro, na adaptação cinematográfica da peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não Usam Black-tie; a segunda, em A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura. Talvez esta última seja seu papel mais forte, em toda a carreira no cinema. Milton Gonçalves morreu nesta segunda-feira, 30, aos 88 anos.
Em retrospecto, se vê que a carreira de Gonçalves no cinema se estende dos anos 1950 até produções mais recentes. São, portanto, mais de 50 anos de uma trajetória em que Milton, ora como personagem principal ora como coadjuvante de luxo, contribuía para a elevação de nível artístico das obras em que trabalhava.
Sua primeira participação em um filme foi no hoje clássico O Grande Momento (1957), de Roberto Santos. Uma fase pré-Cinema Novo, em que os diretores brasileiro procuravam adaptar a estética do neorrealismo italiano à realidade nacional. Nelson Pereira dos Santos fez isso (com Rio 40 Graus e Rio Zona Norte) e Roberto Santos foi a vertente paulistana dessa aclimatação da estética italiana ao Brasil, justamente com O Grande Momento.
Mudando-se para o Rio para fundar com colegas a versão carioca do Teatro de Arena, Milton instala-se no olho do furacão do Cinema Novo. E então participa de diversos filmes do movimento, como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, entre outros. Sem deixar de participar do movimento rival do Cinema Novo, o Cinema “Marginal”, no qual aparece no clássico O Anjo Nasceu, de Julio Bressane.
Milton trabalhou com Hector Babenco (Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, O Beijo da Mulher-Aranha e Carandiru), Zelito Viana (Villa-lobos, uma Vida de Paixão) e Cacá Diegues (Orfeu). Fez o papel-título de Natal da Portela, de Paulo César Saraceni, um nome do núcleo duro do Cinema Novo. Personagem importante, recria a figura ambivalente do bicheiro e patrono da famosa escola de samba carioca. Um filme interessante para se rever hoje, pois estuda como um contraventor pode se tornar herói de uma comunidade desassistida.
Em Rainha Diaba (1974) pode-se dizer que Milton Gonçalves explorou mais a fundo suas potencialidades artísticas – pelo menos no cinema. A personagem, inspirada no malandro travesti Madame Satã, com roteiro de Plínio Marcos, lida com a farsa e o drama em doses proporcionais. Vale dizer que a personagem de Milton é tanto engraçada como trágica e exigiu do artista um retrato forte, mas que não fosse caricato. Desafio plenamente vencido.
Pela interpretação, Milton recebeu os principais prêmios importantes daquele ano (1974): o Candango no Festival de Brasília, o Air France, O Governador do Estado de São Paulo e a Coruja de Ouro.
Há uma passagem engraçada sobre este filme e que Milton contava com gosto aos jornalistas. Ao receber o convite do diretor Antonio Carlos da Fontoura, imediatamente apaixonou-se pela personagem. Mas ciente dos desafios – e dos preconceitos sociais da época – resolveu consultar a família antes de aceitar. “Não poderia deixar de falar com minha mulher (a advogada Oda da Silva Pacú) e os três filhos, então pequenos, que poderiam enfrentar gozação no colégio” (informações contidas no livro Festival de Brasília – 40 Anos, de Maria do Rosário Caetano).
Milton Gonçalves foi ainda premiado como melhor ator no Festival de Gramado, em 2005, por seu trabalho em As Filhas do Vento, de Joelzito Araújo.