Milagre natalino
Dr. Karlos Kastanhede não vê a hora de pegar o carro com a família e ir passar o Natal no hotel que reservara numa praia do Espírito Santo. Chegando lá, entre mergulhos e doses refrescantes de caipirinha, relaxar das carrancas que acumulara nos tratos da firma sabe lá Deus desde quando!
Ele, de comum tão moderado, não resiste à repetição das bebidas e comidinhas, como se nelas compensasse toda a sisudez dos horários dedicados ao ganha pão, sem mastigar direito, respirar saudavelmente… E vai aos poucos perdendo a noção de estar numa praia e hotel lotados, com a mulher e os filhos a cercarem-no em outras atenções que os desejos que lhe vêm não sabe de onde saídos. Repetir novos copos como uma obrigação de satisfazer seu íntimo. Há quanto tempo não olhava as pernocas das moçoilas na areia? Tanta mulher no mundo, e ele só na sua gravata apertada o ano inteiro!
Seus modos mudam. Parece mesmo que a sala da ceia não tem contornos. Escura como uma casa mal assombrada. Cheia de pessoas distantes (demônios?), acha que com ansiedades similares às que lhe tomaram conta. Seu raciocínio pegou defeito. Ofende sem razão. Fugiu-lhe o plano da vida. Não tem mais compromisso com nada. E age como o executivo que não teve infância nem adolescência. Tudo aparecido depois da canseira da direção do carro na viagem, do sol fervente na praia e das inúmeras caipirinhas que pareciam dissipar todos os apertos passados, obrigações não queridas…
Acorda com os primeiros raios de sol, todo vomitado, num banco do jardim do hotel. Aparece-lhe sua mulher resoluta. Depois de todo vexame da noite inteira, não tinha mais como conviverem. Ela se vai, no carro, com os filhos. Ele que se arranje. E sai levando a mala arrumada.
Num outro banco do jardim, um senhor baixinho, bem idoso, olha-o com uma expressão séria, que não consegue ser antipática. Pergunta-lhe onde mora. Rio de Janeiro, zona sul? E faz a estranha pergunta de que se está ao lado da praia, por que foi procurar outra praia tão longe? O velhinho é transparente, e a estranha colocação lhe parece compreensível. É como se dissesse que nós, humanos, gostamos de disfarçar nossas tendências sob pretexto de não sermos mais nós mesmos em qualquer mudança… E aí tudo se tornar permitido. Disfarçados, não temos mais pecados. Mas, por que ir abusar da existência alhures, quando a podemos desfrutar, sem abuso, em nosso próprio lugar? Estanho raciocínio, sim. Que, no entanto, parece ao dr. Karlos absolutamente claro. Talvez pelo ar de compreensão superior que a presença do velhinho transmite.
Com vergonha e arrependimento extremo, sente sua mulher reaproximar-se, como se conduzida pelo mesmo “ar bondoso” do velhinho. E, de fato, é bondosa com ele, dizendo-lhe para ir pegar suas coisas que ela o leva de volta para casa com as crianças.
No carro, na ressaca que o torna mudo dentro de sua vergonha, dr. Karlos Kastanhede pergunta-se se já não conhecera de outras ocasiões aquele velhinho que surgira do nada, no jardim, numa hora tão matutina, no dia seguinte à ceia tardia. É como se Deus se disfarçasse em tantas pessoas que encontramos, e nos dê a mão quando estamos inteiramente caídos. Neste caso, qualquer pessoa pode ser um enviado divino, um anjo, Deus mesmo que tudo governa… E se torna mais clara a grande mensagem cristã de que devemos nos amar uns aos outros. Sim, é nos amando, mesmo se estranhos, que amamos Deus presente em toda a parte, e assim teremos Ele conosco. Quem sabe o velho não seria a Criança que acabara de renascer no eterno e sempre alvissareiro Natal?