• Relançamento da coletânea ‘Exílios e Poeiras’ traz obra menos conhecida de Joyce

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  • 15/05/2022 08:15
    Por Jerônimo Teixeira, especial para o Estadão / Estadão

    Imagine a paisagem literária do século passado sem “Ulisses”, o monumento modernista que revolucionou a história do romance. Suponha que seu autor, James Joyce, tenha morrido prematuramente (na vida real, ele se foi em Zurique, em 1941, aos 58 anos), antes de escrever a obra-prima que neste 2022 completou um século. Ou que seu ímpeto criativo tenha se arrefecido depois que Joyce fez fortuna com o cinema de Dublin no qual investiu em 1909 (ele de fato se arriscou nesse empreendimento, mas só teve prejuízo). Para a hipótese que está se construindo aqui, vamos roubar ao escritor irlandês também “Um Retrato do Artista Quando Jovem” e, claro, o radical Finnegans Wake. Mas lhe concedemos os contos de “Dublinenses”.

    Esse Joyce amputado decerto constaria em antologias dos melhores contos em língua inglesa, com “Os Mortos”, mas não estaria ombro a ombro com Proust e Kafka entre os monstros sagrados da ficção moderna. Nesse triste mundo alternativo, que atenção ganharia “Exílios e Poemas” (Penguin/Companhia), que traz uma peça de teatro e o corpo principal da produção poética de Joyce, na tradução de Caetano W. Galindo? Bem, o autor do presente texto admite, vexado, que talvez não pensasse em resenhar a obra se ela não viesse com a grife do genial criador de “Ulisses”. E é possível que o livro nem sequer ganhasse guarida nas editoras. Isso tudo seria uma pena, pois a peça e os poemas reunidos aqui têm encantos próprios, que não dependem das realizações maiores de Joyce.

    NOS PALCOS – Publicada em 1918 e encenada (sem sucesso) no ano seguinte, em Munique, a peça “Exílios”, como se aprende no competente aparato de notas do livro, foi uma retardatária nos palcos europeus, que então se inclinavam para a vanguarda, enquanto Joyce se agarrava à representação naturalista. A influência do norueguês Henrik Ibsen se faz sentir até nas detalhadas descrições cenográficas de interiores burgueses.

    Em três atos, o drama centra-se sobre a relação entre o escritor Richard Rowan e Bertha, mulher de condição social inferior a quem ele se uniu anos antes em condições escandalosas, e com quem tem um filho. Nitidamente modelado sobre Joyce e sua mulher, Nora, o casal encontra-se, no início da ação, de volta à Irlanda, depois de anos de exílio em Roma.

    Bertha é cortejada pelo jornalista Robert Hand, companheiro de juventude de Richard, que, de seu lado, tem uma queda pela professora de piano de seu filho, Beatrice Justice. Entre vívidos diálogos sobre liberdade sexual e sobre o lugar futuro da Irlanda na Europa, a relação entre os personagens vai se desenvolvendo em torno da sombra de um possível adultério. Joyce não alcança o peso trágico de Ibsen: toda turbulência emocional conflui para uma suave melancolia.

    Há notas melancólicas também nos 36 poemas que Joyce publicou em seu primeiro livro, “Récita Privada”, de 1907 (o título original é “Chamber Music”, literalmente, “música de câmara”, mas a tradução reproduz uma brincadeira que Joyce fez com chamber pot, penico – daí a palavra “privada”). Galdino encontra os tons certos para reproduzir em português a sutileza e a singeleza dos versos originais: “No pinheiral queria/ Deitar contigo/ No sol a pino/ Com sombra e abrigo”.

    É uma poesia tributária do simbolismo francês e imbuída de uma fruição bucólica da paisagem natural que evoca o romantismo inglês. A coletânea seguinte, “Trocados por Versos”, de 1927, reúne a produção de Joyce em seu voluntário exílio na Itália e na Suíça. O leitor vislumbra ternos flagrantes da vida familiar em “Uma Flor Dada a Minha Filha” e “Na Praia em Fontana”.

    Galindo traduziu ainda um poema avulso, o comovente Ecce Puer (Eis o Menino, em latim), de 1932, no qual Joyce celebra o nascimento de seu neto, Stephen, e ao mesmo tempo chora a morte de seu pai.

    RESSONÂNCIA – Em junho de 1941, Carlos Drummond de Andrade publicou “Ecce Puer” – em inglês, sem tradução, com um comentário breve (“um raro poema de James Joyce”) – na coluna que mantinha na revista Euclydes, sob o pseudônimo O Observador Literário. No mês seguinte, a Revista do Brasil trazia Viagem na Família, primeiro grande poema de Drummond sobre seu pai, morto dez anos antes.

    É razoável especular que Drummond se sensibilizou com o modo como Joyce tratou o luto pelo pai, sentimento que o poeta mineiro revisitaria em poemas posteriores como A Mesa. Ele deve ter reconhecido a grande beleza que subsiste mesmo em uma criação menor de Joyce. Os leitores de “Exílios e Poemas” terão a mesma experiência.

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