Nas imagens de Moriyama, a beleza inquieta da fotografia japonesa
No Brasil, a fotografia japonesa é ainda pouco conhecida ou divulgada. Sabemos muito da norte-americana ou da europeia, alguma coisa da africana, mas, em relação à japonesa, existe uma grande lacuna. Ou melhor, existia. O Instituto Moreira Salles exibe uma retrospectiva de Daido Moriyama, fotógrafo que começa a trabalhar no pós-guerra, por volta dos anos 1960, e se transforma em referência da fotografia japonesa contemporânea. Com mais de 250 obras e dezenas de publicações como livros e revistas, esta é a maior retrospectiva do fotógrafo na América Latina.
Quem elaborou o projeto foi o curador Thyago Nogueira, coordenador da área de fotografia do IMS, com ajuda da Daido Moriyama Photo Foundation e apoio da Fundação Japão, além da consultoria dos pesquisadores japoneses Yutaka Kobayashi, Satoshi Machiguchi e Kazuya Kimura. Foram três anos de pesquisa sobre o Daido, além de um mês investigando o trabalho no arquivo do autor em Tóquio.
“Sempre soube que havia uma fotografia muito original sendo desenvolvida do outro lado do mundo, mas eu conhecia pouco”, conta o curador. “Minha vontade foi então explorar essa área e, sem dúvida, o Daido é um expoente desta fotografia mais original.”
Ressignificar
Thyago começou a pesquisar os livros do fotógrafo e, a partir dessa primeira incursão, muitas questões foram surgindo sobre o tipo de imagem que Daido produzia. Por exemplo, fotografias em preto e branco, bastante contrastadas, feitas com uma câmera de pequeno formato enquanto caminhava pelas ruas das cidade. “Eu queria tentar entender o que ele estava propondo com aqueles trabalhos, até porque percebi que muitas vezes ele ressignificava a mesma fotografia de maneiras diversas.”
Essa curiosidade o levou a pedir uma bolsa para estudar fotografia japonesa contemporânea. Passou então um mês pesquisando o arquivo de Daido em Tóquio. “Essa experiência foi muito importante. Só conhecia o trabalho dos livros. Chegando lá, descobri a quantidade de revistas com as quais ele tinha colaborado”, acrescenta o curador.
Entre os anos 1960 e 1980, era nos jornais e nas revistas que a fotografia circulava com mais força. Tanto nos periódicos de notícias como nas revistas de fotografia. Era a imprensa que divulgava a fotografia pelo mundo.
E foi nesse cenário que Daido Moriyama, nascido em 1938 em Ikeda-cho, Osaka, após formar-se em design (em 1961) mudou-se para Tóquio e começou a colaborar na imprensa.
Os anos 1960 foram de transformação cultural: os fotógrafos começam a quebrar as regras da fotografia mais convencional e a própria fotografia clássica documental é colocada em discussão.
Influências
Não foi diferente para Daido. O fotógrafo de 83 anos, que foi influenciado por outros japoneses – como Eikoh Hosoe (1933) que, além da fotografia, fazia cinema e também se destacava por sua imagens em preto e branco de alto contraste, e Shomei Tomatsu (1930-2012), outro expoente da fotografia do pós-guerra japonês -, também recebeu influências como a do fotógrafo norte-americano William Klein (1928) e do artista pop Andy Warhol (1928-1997).
E foi diante desta vasta produção de publicações que Thyago Nogueira se encontrou. Tentou então reconstruir os passos da produção do Daido e suas mudanças no fazer fotográfico. “Daido está com mais de 80 anos, tem 60 anos de carreira e ainda hoje fotografa todos os dias. Não são poucas as imagens que produziu. Tentei compreender os ‘vários Daidos'”, explica Thyago.
Filosofia
O curador passou a nos apresentar, então, o pensamento filosófico de Daido na prática. Perguntas como “o que é a fotografia” ou “qual é a realidade das imagens” perpassam o trabalho do fotógrafo. “Cheguei lá procurando entender como ele trabalhava as imagens e ele sempre deu de ombros afirmando que a fotografia deveria ser trabalhada e retrabalhada de formas diferentes e que tivesse várias vidas.”
Em seu trabalho, percebe-se que ele questiona o próprio fazer do fotojornalismo e como as revistas, jornais e televisão apresentavam o mundo para os espectadores. A liberdade de Daido em relação à própria imagem é também fruto de uma experimentação. “Ele tem uma certa irreverência em relação à cópia fotográfica ou em relação à questão formal da fotografia. Foi algo que me interessou muito no seu trabalho”, diz.
Pós-guerra
A obra do artista começa num país que havia sido destruído e humilhado na Segunda Guerra Mundial. Talvez isso o tenha levado a questionar o valor e a importância da fotografia. Em 1969, fez parte de uma revista chamada Provoke, que debatia a submissão das imagens às palavras. Um ano depois, influenciado por Jack Kerouak (1922-1969), resolveu viajar pelo Japão – e daí surgiu o livro Um Caçador (1972).
No mesmo ano, ele publica Adeus Fotografia, com negativos rasgados e inutilizados. “Este livro é na verdade uma crítica ao poder de transformação das imagens, mas ao mesmo tempo uma declaração de fé na fotografia”, observa Thyago.
Muito antes de a fotografia entrar na academia e se tornar objeto de reflexão e discussão, as imagens de Daido Moriyama nos levam a pensar nela em si e como objeto imagético.
A vasta produção do fotógrafo ainda atuante ocupa dois andares do IMS e nos apresenta as várias fases do artista. “Ele expandiu a linguagem fotográfica, desafiou nossa visão e levantou questões que ainda hoje merecem ser pensadas ou repensadas”, conclui o curador e pesquisador.
Daido Moriyama: Uma Retrospectiva
Instituto Moreira Salles
Av. Paulista, 2.424.
Tel. (11) 2842-9120.
3ª a dom. e feriados (exceto 2.ª), das 10h às 20h.
Grátis.
Até 14/8.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.