Peça de Gerald Thomas inspirada em mulher de Dalí abre o 30º Festival de Curitiba
Gerald Thomas anda sensível, tem chorado um bocado, inclusive na frente dos outros. Foi assim em meio aos ensaios do espetáculo G.A.L.A., realizados nas últimas duas semanas, o mesmo que o dramaturgo e encenador lançou em setembro na plataforma online do Sesc e, agora, se materializa no palco do Teatro Guairinha. O monólogo, protagonizado pela atriz Fabiana Gugli, faz duas apresentações presenciais pela primeira vez, nesta terça, 29, e quarta, 30, na abertura do 30º Festival de Teatro de Curitiba.
Quem acompanhou o processo, em uma das salas da SP Escola de Teatro, na Praça Roosevelt, viu o polemista duro na queda surpreendido pela própria emoção, à procura do seu contrabaixo para improvisar um solo, enquanto recuperava o prumo. “Sei que não posso me mostrar vulnerável desse jeito diante de uma equipe, mas não tenho conseguido segurar a onda porque é muita coisa ao mesmo tempo”, justifica Thomas, aos 67 anos, endossando o ultrapassado clichê de que demonstrações de sentimentos ferem a autoridade de um diretor.
A última vez que o artista saiu dos Estados Unidos foi em dezembro de 2019, antes da pandemia, para lançar o livro Um Circo de Rins e Fígados no Brasil. Confessa que, apesar das três doses da vacina, ficou temeroso de deixar seu apartamento, em Nova York, para enfrentar um aeroporto lotado e atravessar um voo de dez horas sem comer absolutamente nada. Ao pisar na sala de ensaios, porém, o medo abriu espaço para um ansiado reencontro com os colegas, depois de dois anos, longe dos computadores. “De um lado, é a alegria de perceber que voltamos a projetar um futuro, mas, de outro, não posso negar que sou tomado pela melancolia por me enxergar refém da minha própria obra”, reconhece.
À deriva
A protagonista de G.A.L.A. é uma mulher à deriva em um barco prestes a naufragar. Ela busca uma saída viável para renascer depois de um período caótico. Percebe, no entanto, que só será ouvida se romper com antigos discursos e enxergar o novo mundo que se anuncia. O dramaturgo garante que a inspiração veio da imagem da russa Gala Dalí (1894-1982), mulher e musa do pintor catalão Salvador Dalí, porém, é inegável estabelecer conexões com sua própria trajetória profissional, que alcançou o auge nos anos de 1980 e 1990.
“Essa mulher sonha em existir, em decolar, mas ela sabe que, no fundo, a canoa está furada”, comenta Thomas. Fabiana, que trabalha com o artista desde 1999, acredita que muitas palavras da personagem traduzem as angústias do autor em busca de novas conexões com o teatro e o seu público. “O Gerald vasculha um lugar íntimo dele, de como se desfazer da própria história e recomeçar do zero”, analisa a atriz.
O texto da versão digital de G.A.L.A., escrito em setembro, passou por mudanças, substituindo parte da verborragia por imagens renovadas e só possíveis no palco. “A solidão fica muito mais evidente com essa mulher falando sozinha para o universo naquela imensidão vazia, naquele barquinho pequeno”, ressalta a intérprete, sobre a diferença do digital para o presencial. Thomas sublinha que boa parte das alterações se deve a um cenário menos ameaçador da pandemia. “Agora, a personagem não pode aceitar passivamente o naufrágio porque enxerga que a vida continua e não está mais limitada a um vírus.”
O Festival de Curitiba faz parte do persistente e, às vezes, truncado diálogo de Thomas com a plateia brasileira. Ele esteve na cidade na edição inaugural, em 1992, com The Flash and Crash Days, tendo Fernanda Montenegro e Fernanda Torres à frente do elenco. Voltou no ano seguinte para apresentar O Império das Meias-Verdades e, mais adiante, UnGlauber, Nowhere Man, Quartett, Os Reis do Iê-Iê-Iê e Ventriloquist, entre outras.
Se a ideia é olhar para frente, o encenador se sente aliviado de encontrar a agenda tomada em 2022. Em maio, ele desembarca em São Paulo para ensaiar um trabalho inédito, Doroteia, que estreia em junho, com os atores Otávio Müller, Fabiana Gugli, Ana Gabi e Lisa Giobbi, entre outros. A primeira investida na obra de Nelson Rodrigues é cercada de mistérios pelo diretor conhecido pela desconstrução das dramaturgias. “Vai ser um espetáculo apoiado nos contrastes de beleza e feiura, bem e mal, céu e inferno”, antecipa. “É um texto que desejo montar desde 1987 e chega em boa hora porque atravessamos uma era de polarizações.”
Evento intenso: 25 peças oficiais, 120 espetáculos de rua e 2 mostras
Depois de dois anos, os palcos da capital paranaense ganham luz para sediar o Festival de Curitiba. O maior evento de artes cênicas do País recebe, entre hoje, 29 de março, e 10 de abril, 25 espetáculos em sua vitrine oficial, agora batizada de Mostra Lúcia Camargo, homenagem à curadora, que morreu em 2020 e foi figura ativa do festival, além de 120 apresentações de rua e duas programações paralelas.
A grade celebra nomes que cresceram junto a essa história de 30 anos. Além de Gerald Thomas, grandes diretores como Gabriel Villela (Cordel do Amor Sem Fim ou Flor do Chico), Marcio Abreu (Sem Palavras) e William Pereira (O Náufrago) aparecem na programação organizada pelos curadores Leandro Knopfholz e Fabíula Passini.
Em primeira mão, Tudo, comédia dramática dirigida por Guilherme Weber, tendo Julia Lemmertz e Vladimir Brichta no elenco, faz sessões de pré-estreia. As atrizes Denise Stoklos e Denise Fraga marcam presença com os solos Abjeto – Sujeito e Eu de Você, enquanto os musicais são representados por A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa e Brasileiro, Profissão Esperança, além do show AmarElo, de Emicida.
O teatro de grupo chega à cidade com o Armazém (Angels in América), Cia. dos Atores (Conselho de Classe), Galpão (Till, A Saga de um Herói Torto), Magiluth (Estudo n.º 1 – Morte e Vida), Parlapatões (Prego na Testa e Parlapatões Revistam Angeli) e Os Satyros (Aurora). Quem também passa por Curitiba é Deborah Colker, com Cura, e garantia de diversão é a comédia O Mistério de Irma Vap, protagonizada por Luís Miranda e Mateus Solano.