• Em Dusseldorf, uma Lygia Pape múltipla recria a arte ‘como liberdade’

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  • 28/03/2022 08:30
    Por Ana Lourenço / Estadão

    Explorar, interagir e mergulhar. Assim é possível resumir o trabalho da carioca Lygia Pape (1927-2004). Múltipla, ela acreditava que arte era “vida e liberdade”. E, por isso, explorou linguagens e formatos de fazer arte, desde o design até o cinema. Sua importância, já reconhecida mundialmente, agora ganha espaço na Alemanha, com a exposição The Skin of ALL, em cartaz até 17 de julho no museu Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, o K-20, em Dusseldorf.

    Depois de anos dentro de casa por causa da pandemia, sair torna-se quase um evento. Pensando nisso, a exposição remete à volta da possibilidade de explorar os diversos caminhos do olhar e dos sentidos. Afinal, para Lygia, o público era agente ativo de sua obra. “A expressão escolhida como nome da mostra é retirada de um texto de Lygia, originalmente em português (A Pele de Todos), que aborda a experiência sensorial. A tradução para o inglês, colocando ALL em maiúsculo, é para dar ênfase ao significado de que ‘all’ em inglês é tudo e todos”, explica Paula Pape, filha da artista e diretora do Projeto Lygia Pape.

    Para a exposição, a curadora Isabelle Malz selecionou 18 obras, desde suas mais icônicas, como Ttéia 1,C (2002), até uma meticulosa seleção de suas pinturas, desenhos, relevos e tecelares. Grande parte das peças escolhidas data dos anos 50, quando Lygia integra-se ao Grupo Frente, considerado um marco no movimento construtivo das artes plásticas. Seus integrantes propunham uma ruptura com as regras tradicionais e traziam o público para integrar a realização completa da obra.

    “Lygia Pape é, juntamente com Lygia Clark e Hélio Oiticica, uma das figuras-chave de um movimento modernista no Brasil. Nossa exposição apresenta essa artista extraordinária em toda a sua versatilidade e poesia, prestando-lhe homenagem como uma voz única dentro de um desenvolvimento artístico global”, diz Susanne Gaensheimer, diretora do museu.

    O lugar é conhecido pelas coleções de arte, e conta com três áreas de exposição: K20, onde estão as obras de Lygia; K21, espaço dedicado à arte contemporânea; e Schmela Haus, lugar de pesquisa histórica do discurso e da arte. Lá dentro, nomes como Pablo Picasso, Henri Matisse, Piet Mondrian e Andy Warhol consolidam a reputação de Düsseldorf como centro do cenário artístico mundial.

    “Com Lygia, também destacamos uma importante artista feminina do Brasil, cuja influência se estende muito além da América do Sul. Isso também é parte de nossos esforços contínuos para expandir a historiografia anteriormente dominada por homens e eurocêntricos do século 20”, completa Susanne.

    INTROSPECÇÃO

    Para mostrar o legado de Lygia, a produção traz, ainda, 11 filmes, como Eat Me: a Gula ou a Luxúria?, que trabalha com a imagem da mulher como objeto de consumo, e mais seis performances, como o clássico Roda dos Prazeres, que consiste em um círculo de tigelas com líquidos coloridos para o público experimentar o “sabor” das cores.

    A genialidade de Lygia, assim, não está somente nas obras expostas, mas sim na interpretação do público. Elas não foram criadas para serem vividas apressadamente, mas com tempo para reflexão. “Lygia focava muito em cada exposição ter a sua particularidade. Nada se repete, cada obra sua, quando em contato com o público torna-se um momento único”, explica Paula.

    Raramente vista, a instalação de 1979 Ovos dos Ventos, exposta em The Skin of ALL, é um bom exemplo. Ali, uma fileira de sacos com balões formando um retângulo de quase 3 metros de altura recebe luz interna e mostra a transparência e leveza dos materiais. “A obra trata da fragilidade do mundo, uma questão bastante atual, já que estamos também vivendo uma guerra na Europa”, opina Paula.

    LIBERDADE

    Outro tema atual, mas também já retratado por Lygia em 1968, é a liberdade pessoal dentro de uma sociedade. Em Divisor, um grande tecido branco com furos permite que as pessoas coloquem ali suas cabeças, se tornando pontos únicos dentro do todo. Sua reativação está agendada para o dia 1.º de junho. “Essa interatividade está presente em toda a obra, de uma forma conceitual. Estará exposto, por exemplo, o original do Livro da Criação feito pela artista, mas também numa outra vitrine aberta teremos uma prova de exposição que poderá ser manipulada por todos”, explica Paula.

    Ao mesmo tempo, Lygia tem uma arte crítica, especialmente durante a década de 1970, quando o Brasil passava por uma ditadura militar. Para isso, ela apresenta uma arte voltada à cultura pop brasileira, criticando, de modo metafórico, o regime. Posteriormente, com o Cinema Novo, realiza cartazes e letreiros, sempre destacando o olhar para as questões sensoriais.

    “Dentre os artistas em circulação por aí, nenhum é mais rico em ideias do que Lygia Pape. As ideias não são nela conceitos ou preconceitos, mas antes fragmentações de sensações que conduzem o papel de um espaço a outro evento e deste a um estado em que bruxuleiam cores e espaços que se devoram, entre o interior e o exterior. (…) Dando o toque de contemporaneidade ao estado-estrutura, em que tudo volta a ser o que não era, e as pós e pré-imagens recomeçam o ciclo de criatividade”, pontuou o jornalista e crítico de arte Mário Pedrosa no livro Lygia Pape (Funarte, 1983).

    Apesar da distância com os dias de hoje, o texto, assim como o trabalho da artista, continua sendo certeiro e atual. Levando uma boa representação do modernismo brasileiro também para além das fronteiras do País.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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