• ‘O nosso inimigo é a oligarquia, não a Rússia’, diz biógrafo de Stalin

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  • 09/03/2022 16:06
    Por Redação, O Estado de S. Paulo / Estadão

    Existem duas grandes visões opostas, mas não necessariamente excludentes, sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. A primeira se desenvolveu no Ocidente tendo como base o pensamento de Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, ecoando os russos Aleksandr Solzhenitsyn e Mikhail Gorbachev.

    Por essa visão, a Ucrânia seria inseparável da Rússia. São povos que comungam uma mesma raiz étnica e cultural. Kiev, hoje capital da Ucrânia, foi o centro da primeira experiência de uma Rússia unificada, sonho desfeito pela conquista Mongol no século XI. É uma visão que valoriza o empuxo histórico profundo e acredita no poder intangível de uma Alma Russa.

    A segunda grande visão tem sua matriz no pensamento pragmático de George Kennan, diplomata lendário nos Estados Unidos por ter formulado os princípios fundamentais da convivência não catastrófica com a União Soviética, cuja expressão cínica foi a Guerra Fria. Essa visão se define por considerar que as oligarquias totalitárias (a comunista, antes, e a cleptocracia de Putin, agora) não representam o povo russo, sendo elas os verdadeiros inimigos. Por essa matriz de pensamento, as tiranias que se abatem periodicamente sobre o povo russo precisam ser “contidas” com toda a energia disponível. Contenção é o conceito-chave.

    Essa linha de pensamento orbita hoje em torno de Stephen Kotkin, da Universidade de Princeton, autor de três livros essenciais sobre Josef Stalin. Kotkin diz que nos quase 25 anos de independência recente o povo ucraniano escolheu ser europeu e ocidental, o que parece demonstrado pela resistência ardorosa ao invasor russo e o maior êxodo da história recente da Europa – com a fuga de quase 2 milhões de ucranianos, a maioria mulheres e crianças.

    Kotkin defende que é preciso conter o inimigo Putin e seus aliados próximos. Ele celebra o fato de que, depois da invasão, o Ocidente se uniu rapidamente em torno de seus valores históricos: capital humano, democracia, liberdade de expressão, economia aberta e instituições fortes.

    O professor de Princeton sustenta, em explanação feita ao podcast Uncommon Knowledge, que a guerra na Ucrânia mudou o curso da história contemporânea, fazendo renascer o Ocidente como ideia – mandando também uma mensagem clara para a China sobre o compromisso ocidental com a independência de Taiwan.

    A Ucrânia não é da Rússia

    Discordo de Henry Kissinger. (o ex-secretário de Estado publicou em 2014, durante a crise da Crimeia, um artigo no Washington Post no qual argumentou que a Ucrânia, pela história próxima com a Rússia, teria de servir de ponte com o Ocidente, mas nunca seria um país totalmente dissociado do Kremlin).

    A Ucrânia é um país separado, independente e soberano em relação à Rússia. Isso é verdade desde 1991, e deve ser verdade daqui para frente. A guerra é sempre um erro de cálculo parcial ou total. Você calcula mal o quão forte você é, quão fraco é o inimigo, e quão fácil vai ser. São cálculos errados de quão baixos serão os custos, quão grandes serão os benefícios.

    O susto de Putin

    Está muito claro que Putin não entendeu quão forte era a Rússia, quão fraca era a Ucrânia e, acima de tudo, qual seria a resposta ocidental. Antes da guerra, muitos subestimavam a sociedade ucraniana. Muitos subestimaram o presidente da Ucrânia, pensaram que os europeus não se levantariam e fariam sacrifícios.

    Muitos pensaram que o presidente Biden não estava à altura, especialmente depois do fiasco no Afeganistão. Além disso, muita gente pensou que o Exército russo é sério, bem administrado e modernizado. Portanto, há muitas suposições nas quais uma guerra se baseia e quando essas suposições estão erradas, tudo pode parecer insano.

    A inteligência do Ocidente funcionou

    As agências de inteligência dos EUA estavam certas desta vez. E essa informação foi compartilhada em tempo real com os aliados europeus, mostrando a eles as capacidades e possíveis intenções da Rússia e prevendo que eles invadiriam. As agências de inteligência, com os britânicos, acertaram em cheio nisso.

    Depois reuniram publicamente o apoio do Ocidente de uma maneira realmente grande. Parabéns às agências de inteligência que levaram uma surra ultimamente, nas últimas duas décadas no Iraque e em muitas outras questões. Eles acertaram nessa. Essa é uma grande questão, não apenas para a Rússia, mas também para a China.

    O heroísmo dos ucranianos

    Tudo aqui é sobre o povo ucraniano e o governo ucraniano em primeiro lugar. Eles estão na linha de frente, estão morrendo. Os russos estão bombardeando hospitais infantis. Isso é o que está acontecendo. E os ucranianos se recusam a capitular. Eles estão resistindo, estão desarmados. Mas eles têm a determinação de lutar por seu próprio país. E aquela fibra dos ucranianos, que surpreende os russos, surpreende os europeus, surpreendeu muita gente em Washington, que tinha uma opinião ruim da sociedade ucraniana.

    As pessoas têm medo de trazer informações ruins para o autocrata. E o autocrata acha que sabe mais do que ninguém, e começam a acreditar em sua própria propaganda. Carecem dos mecanismos corretivos das eleições e de homens sábios dos bastidores que aparecem e dizem: “Sabe, Sr. Presidente, isso pode não ser uma boa ideia”.

    Quem faz isso no caso russo ou no caso chinês agora? Ninguém. E isso é uma grande força para uma democracia. Não é preciso ter as pessoas mais inteligentes nos cargos para ter esses mecanismos corretivos.

    A expansão da Otan foi só um pretexto

    Eu não usaria a palavra “democrata” para muitos que se autodenominavam democratas. Yeltsin era um autoproclamado democrata e nomeou Putin para dar poder à Constituição que Yeltsin criou em 1993. A Constituição foi usada por Putin para criar um regime autocrático. Yeltsin chegou ao poder antes de Putin. Membros da KGB em massa, incluindo Putin, também. Portanto, há um mal-entendido sobre a democracia na Rússia nos anos 90.

    Há processos internos na Rússia de Putin, que começaram na Rússia de Yeltsin, que antecedem a ambos em muito, muito tempo, e remontam à autocracia, à repressão, ao militarismo, à suspeita de estrangeiros. Estas não são reações a algo que o Ocidente faz ou deixa de fazer. São processos internos que tiveram uma dinâmica própria e a expansão da Otan se tornou um pretexto ou uma desculpa post facto.

    Há muitos anos estamos nessa autoflagelação. Vamos imaginar que não houvesse expansão do perímetro de segurança da Otan, onde estariam esses países agora? Onde estariam a Checoslováquia, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, onde estariam agora? Eles estariam potencialmente no mesmo lugar que a Ucrânia. Assim, a causalidade é oposta aqui.

    A Otan ameaça Putin e sua gangue, não o povo russo

    O maior erro de todos é quando nós, o Ocidente, confundimos a Rússia com o seu regime. Putin se sente inseguro, a Otan o ameaça pessoalmente em sua mente. A UE ameaça Putin, a democracia o ameaça, a ele e a seu regime. Mas isso ameaça a Rússia? Ameaça a segurança russa? Uma democracia cheia de falhas como a Ucrânia ameaça a segurança de uma nação gigante, uma civilização completa como a Rússia? Sejamos honestos, não. Isso nunca aconteceu. E, portanto, é uma ameaça fictícia e é uma fusão de um país e sua segurança com um indivíduo e seu regime de gângsteres, místicos e cleptocratas.

    Desde que pagou um alto preço pela anexação da do território ucraniano em 2014, a Rússia tentou tornar sua economia à prova de sanções e isolamento.

    Então, sinto muito, mas devo discordar de muitos eminentes analistas e dizer que a Otan não é responsável pelo regime de Putin ou pela guerra na Ucrânia. A capacidade dos países de escolher sua política externa e suas alianças voluntariamente está inscrita na carta da ONU. Está escrito na Lei de Helsinque de 1975, na Carta de Paris de 1990 para uma nova Europa, no Ato Fundador da Otan com a Rússia de 1997.

    Se as assinaturas da Rússia em cada um desses documentos, e Moscou assinou a carta da ONU, o Ato Final de Helsinque, a Carta de Paris em 1990 e a fundação da Otan, que não coloca nenhum limite à expansão da aliança. A assinatura de Boris Yeltsin está nela. As obrigações internacionais e a liberdade e a defesa da liberdade estão de um lado, e Vladimir Putin e seu regime de gângsteres e sua invasão não provocada da Ucrânia estão do outro lado.

    Faltou diplomacia

    A expansão da Otan funcionou para o Ocidente, mas não quer dizer que por si só tenha sido uma política inteligente. O problema com a política americana em relação à Rússia, como sempre, é a síndrome de Pigmalião. Ir aos países, transformá-los, transformar sua personalidade. Sempre gostamos de pensar que, se outro país tiver a oportunidade, está morrendo de vontade de se tornar como os EUA. E isso não é verdade.

    China e Rússia têm sua própria história, sua própria cultura, suas próprias instituições e seu próprio orgulho. E assim, quando o esforço Pigmalião na Rússia previsivelmente explodiu na cara dos EUA, em paralelo à expansão da Otan, o Pigmalião foi abandonado. Mas se continuou a expansão da Otan. E não havia diplomacia real levando em conta quaisquer interesses estratégicos que a Rússia tivesse. Os EUA ficaram abertos à surpresa de que Putin tinha o poder de fazer algo sobre o acordo injusto. E ele fez. Mas isso não deve ser confundido com a expansão da Otan.

    O papel das elites russas

    As elites russas precisam de uma participação na ordem internacional. E essa aposta significaria que, em vez de serem incentivados a perturbar e derrubar, eles seriam incentivados a ajudar. Mas não podemos permitir que essa ordem internacional estável seja usufruída às custas da liberdade de outros países. Não podemos entregar a liberdade de outros países.

    O mundo multipolar é uma ilusão

    A invasão de Putin da Ucrânia é uma enorme oportunidade. Venho argumentando há muito tempo que o Ocidente é incrivelmente poderoso, tem todas as instituições, todo o capital humano, toda a tecnologia, todo o poder. E mesmo assim não entende isso. Aqui estamos no Ocidente, falando sobre como estamos em declínio.

    Estamos falando sobre como o sistema transatlântico não é necessário ou não funciona mais. Estamos falando sobre como a Otan é flácida, talvez esteja com morte cerebral e devesse ir embora. Estamos falando sobre como não podemos ensinar sobre a Civilização Ocidental em nossas universidades porque é demais. Mas isso é um absurdo. O Ocidente é incrivelmente poderoso.

    O poder das instituições

    Só precisamos lembrar que os Estados Unidos são uma superpotência. Têm o sistema financeiro. Criam a tecnologia, a biotecnologia, e qualquer outra esfera que você possa nomear. Tem as instituições, a separação de poderes, o estado de direito. Defendem a liberdade, a propriedade privada.

    Vamos parar com esse absurdo, com essa autoflagelação, e com essa conversa sobre um mundo multipolar que não existe. Não precisamos nos envergonhar por nossa civilização. O Ocidente não é um termo geográfico. É um pacote institucional. A Rússia é europeia, mas não ocidental. O Japão é ocidental, mas não europeu.

    O heroísmo de Zelenski

    O presidente Zelenski, mesmo em grande perigo pessoal, permaneceu em Kiev para liderar o esforço de guerra que nos galvanizou para lembrar quem somos. É extremamente cedo na guerra e não queremos exagerar, mas esse tipo de heroísmo, em circunstâncias muito difíceis, é incrível.

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