‘A Última Sessão de Freud’ promove reflexão sobre a aceitação de ideia divergente
Na quinta-feira, dia 24, uma semana antes de A Última Sessão de Freud entrar em cartaz, o ator Odilon Wagner dirigia seu carro até o ensaio e, pelo rádio, ouviu as primeiras notícias sobre a invasão russa à Ucrânia. “Impressionante, mais de 80 anos depois, o mundo não mudou nada, são sirenes, bombardeios e líderes vaidosos disputando poder, incapazes de dialogar”, pensou ele.
É no mesmo clima de tensão, no dia em que a Inglaterra declarou guerra à Alemanha de Hitler, em 1939, que se ambienta a ação da peça escrita pelo americano Mark St. Germain, com base no livro Deus em Questão, do psiquiatra Armand M. Nicholi Jr.
A Última Sessão de Freud, montagem dirigida por Elias Andreato, estreou na quinta, 3, na Sala Itaú Cultural, uma temporada gratuita, com uma proposta desafiadora para os tempos atuais: promover uma reflexão em torno da importância do debate e da aceitação de ideias divergentes.
O espetáculo realiza um encontro fictício entre o psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939), interpretado por Wagner, e o escritor, professor e teólogo irlandês C. S. Lewis (1898-1963), representado pelo ator Claudio Fontana. O primeiro, ateu convicto, não se conforma com a recente conversão de seu interlocutor. O segundo, intelectual respeitado, abraçou a crença em Deus e se declarou um cristão. “São duas pessoas dividindo ideias sem o objetivo de chegar a uma conclusão, porque cada um manterá a sua fé e o público jamais se sentirá pressionado a tomar partido”, define Fontana.
IDENTIFICAÇÃO
Odilon Wagner salienta que a peça sai do caráter cerebral e encanta as pessoas por uma identificação imediata, principalmente ao abordar temas como a violência das guerras e o medo da morte, algo que todos sentiram na pele durante a pandemia do coronavírus. Esta receptividade foi testada em ensaios abertos. “Fizemos questão de ouvir diferentes perfis de público até por uma coerência em relação ao trabalho que estamos desenvolvendo”, justifica.
Colegas da classe artística, psicólogos, médicos, religiosos, professores e pessoas que nem sequer carregavam referências sobre Freud e Lewis assistiram às apresentações-teste, nas últimas semanas, seguidas de bate-papo. “Todo mundo comenta o prejuízo da polarização vivida hoje em dia e sai estimulado para continuar as discussões geradas pelo espetáculo”, comenta Wagner.
Elias Andreato respirou aliviado depois de ter acesso aos primeiros retornos. O diretor confessa que sua maior preocupação era tornar o texto de St. Germain palatável, ainda mais diante de uma plateia heterogênea – afinal, não pode ser esquecido que a primeira temporada terá entrada franca. “É sempre necessário falar de religião e ciência, mas neste momento ninguém tem paciência para nada, nem para respeitar a opinião alheia ou mesmo para encarar uma peça que exija uma reflexão profunda”, lamenta.
Diante da proposta de ampliar o alcance, o diretor dispensou simbologias e desenvolveu uma encenação realista, como as chamadas “peças de gabinete”, que reproduzem com o máximo de fidelidade o ambiente das ações. Quando a cortina do teatro for aberta, por exemplo, o público verá uma reconstituição do consultório londrino de Freud, graças ao cenário assinado por Fabio Namatame. “Deixei o cotidiano fluir diante do espectador como um dinâmico jogo de pingue-pongue para que ninguém se sinta diminuído ou entediado com a história”, conta Andreato.
Se para Freud e Lewis a questão religiosa vira polêmica, o mesmo embate não existe entre os intérpretes dos personagens. Filho de judeus, Odilon Wagner, de 68 anos, cresceu em meio às tradições familiares, mas confessa que, apesar do respeito, não se conectou ao judaísmo. A identificação veio através do espiritismo, que segue há quatro décadas, e, segundo ele, transformou seu mundo. “O espiritismo me trouxe uma sedimentação e me ensinou coisas que, mesmo adulto, não conseguia entender”, diz.
Também espírita, Claudio Fontana, de 59 anos, foi criado entre católicos e, na adolescência, se declarou ateu por discordar de tantos dogmas. Descobriu a própria religião depois dos 30 e garante que mudou muito o seu jeito de encarar a vida. “Não há uma receita para a religiosidade, cada um em algum momento pode encontrar a sua, mas o que me cativou são os valores do espiritismo e o fato de não se apoiar em uma estrutura hierárquica, como outras religiões”, completa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.