• Peça ‘Névoa’ desmascara os erros da sociedade

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  • 02/03/2022 08:06
    Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão / Estadão

    Em sua noite de glória, Dennis Sullivan (interpretado por Felipe Ramos) recebeu o Oscar de melhor roteiro pelo filme From White Plains. O premiado longa-metragem enfoca um grupo de adolescentes de uma escola de classe média ameaçado pelo bullying de cada dia. No inflamado discurso de agradecimento, Dennis, também conhecido por sua militância pela causa LGBT, revela que sua inspiração veio do trauma do suicídio de um colega. Segundo ele, o garoto não suportou os constantes abusos de outro estudante, o homofóbico Ethan Rice (papel de Felipe Frazão), que, naquela noite, 15 anos depois, ouve seu nome citado diante de uma audiência multiplicada a cada minuto na internet.

    Este é o ponto de partida de Névoa, From White Plains, peça do americano Michael Perlman que, em sua primeira montagem brasileira, ganha direção de Lavínia Pannunzio. Além de Ramos e Frazão, um terceiro Felipe, Hintze, aparece no elenco como Gregory, o marido de Dennis que, ao contrário do parceiro, se sente pouco à vontade em relação a sua sexualidade. O quarteto se completa com Sidney Santiago Kuanza na pele de John, o melhor amigo de Ethan.

    Bullying, homofobia, cancelamento, suicídio na adolescência, preconceitos disfarçados. O texto é estruturado em cenas que envolvem duas duplas em um constante embate verbal. De um lado, Ethan e John, amigos de longos anos, que adoram tomar cerveja diante da televisão, enfileiram brincadeirinhas sem graça sobre todo mundo, mas escondem questões íntimas que podem colocar em dúvida a real intimidade. Do outro, Dennis e Gregory, um casal que vive uma relação abalada por conta de divergências de pensamentos. “Essa é a grande contradição do Dennis, que luta para que todos os gays tenham voz e atitude, mas, dentro da própria casa, não convence o marido a ser verdadeiro”, explica Ramos, um dos idealizadores do projeto ao lado de Hintze.

    Ramos e Hintze trabalharam juntos em O Corte, texto de Mark Ravenhill, encenado em 2016, e Senhor das Moscas, dirigido por Zé Henrique de Paula, em 2017, e começaram a pesquisar dramaturgias contemporâneas capazes de chegar ao público com a potência de um alto-falante. “Eu também queria fugir da imagem do machão, do cara violento, algo que vinha se repetindo em meus trabalhos e colocar o meu corpo e a minha voz a serviço de uma nova mensagem”, justifica Ramos. “Até por isso, convidamos a Lavínia, porque, em meio a um universo tão masculino, é importante uma mulher na direção.”

    Falência

    O texto caiu nas mãos de Lavínia ainda em 2018, quando a atriz pesquisava sobre a obra do escritor africano J.M. Coetzee que renderia o monólogo Elizabeth Costello. Ela enxergou na peça de Perlman mais uma oportunidade de discutir a falência moral da civilização, algo que a revolta nos últimos anos. “A cada minuto, a gente tropeça em uma série de barbáries e insistimos em acreditar nessa sensação de que o homem é bom e fraterno”, declara. Como diretora, Lavínia lapidou possibilidades de como levar esse teatro discursivo ao palco com vigor, inclusive, por trabalhar com uma geração de atores na faixa dos 30 anos. “Essa geração tem uma lucidez, uma noção de seu posicionamento no mundo que eu, aos 55 anos, ainda não alcancei”, reconhece.

    Apostas

    Uma de suas apostas foi a de escalar para os personagens Ethan e John dois intérpretes negros, algo que não consta nas rubricas do dramaturgo e, segundo ela, faz diferença como representatividade. “Estamos cansados dessa branquitude absurda que virou o teatro brasileiro, então ou entramos nessa conversa de uma vez ou continuaremos fazendo peças que não revelam nada do Brasil e interessam a um número cada vez menor de pessoas.”

    A atriz, reconhecida em três décadas de carreira, tem cedido cada vez mais espaço para a encenadora. Com a estreia de Névoa, Lavínia foca a atenção em Ay, Carmella, peça de José Sanchis Sinisterra na qual vai comandar os atores Flávia Couto e Paulo William. “Estou atravessando uma crise artística, me vejo sem voz para atuar, mas, como diretora, tem sido o contrário, tenho visto muitos textos que considero relevantes e devem ser colocados em cena.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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