• Ignácio de Loyola Brandão comenta sobre os 40 anos de ‘Não Verás País Nenhum’

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  • 15/02/2022 18:34
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    Os rios acabaram secando, fruto de um desmatamento desenfreado, o que resultou em uma incômoda poeira espessa espalhada em todos os cantos. Apesar de apocalíptico, o cenário se aproxima em diversos aspectos da realidade do planeta hoje, o que transformou o romance Não Verás País Nenhum, no qual reina aquele ambiente, em um potente escrito visionário.

    “Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática”, comenta seu autor, Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Caderno 2. “Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: ‘tomara que tal futuro jamais aconteça’. Mas, certa vez, uma mulher me disse: ‘mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta’.”

    Não Verás País Nenhum completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global: além do texto original, o volume traz um apêndice de 32 páginas coloridas, nas quais Loyola apresenta o que chamou “Diário de Trabalho”. Nele, estão registrados a evolução dos textos, as descobertas, as buscas de palavras e expressões, e o questionamento do significado das cenas e o surgimento dos personagens. Registra também algumas capas publicadas no Brasil e no exterior.

    CONTO. Isso porque o romance passou por um fervilhante processo criativo. Loyola trabalhava na Editora Abril, em 1972, quando rascunhou um conto chamado O Homem do Furo na Mão. A inspiração veio das conversas com colegas do trabalho, especialmente as que tratavam da ditadura militar que vigorava na época e suas consequências como censura, prisões, mortes. “As pessoas ‘diferentes’ incomodavam os ‘normais'”, comenta Loyola, que escreveu o conto, mas o manteve na gaveta.

    Com o tempo, ele passou a guardar recortes de notícias sobre devastação, poluição, enchentes, inundações, doenças estranhas causadas pelo sol. “Então, comecei a reescrever o conto que tinha oito ou dez páginas. Ele cresceu, cheguei a 50, 100, 200 páginas”, conta. “Seria um romance, a ideia pipocou meses dentro de mim: um Brasil sem árvores – o Amazonas, um deserto. O principal estava ali, delineei o País, o sistema, a natureza morta, os efeitos, a corrupção e, quando a coisa ferveu, me vi, depois de três anos, com o romance pronto.”

    O fio condutor do romance é a trajetória de um professor de História que, nas primeiras décadas do século 21, é aposentado como forma de punição pela direção da universidade porque insistia em publicar os fatos reais, enquanto os governantes reescreviam ao seu interesse.

    Para criar o título, o autor se inspirou em um verso de Olavo Bilac, do poema A Pátria, de 1904: “Criança! Não verá país nenhum como este! / Imita na grandeza a terra em que nasceste”. “Loyola releu o poema, tomou fôlego e trouxe o abismo para dentro de casa”, observa a historiadora Heloisa M. Starling, em texto publicado no livro. “Foi cirúrgico. Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.”

    TAMANHO

    Loyola relembra que chegou a vacilar em relação ao tom do texto. “A certa altura, lá pela lauda 300, reli tudo e me sufoquei. Quem ia ler esse brutamontes? Imediatamente passei um fio da navalha, porque sabia que se usasse a sátira, o humor, o absurdo total o leitor respiraria, e assim foi. Levei meses reescrevendo, cheguei mesmo a cortar vários segmentos”, relembra ele ao Estadão.

    A fama de utópico, que colou no romance ao longo dos anos, nunca foi bem digerida pelo próprio autor. “Não antevi nada, imaginei tudo, a realidade me copiou e continua a copiar. O sucesso do livro hoje é essa estranheza. O horror de ele ser possível”, comenta Loyola. “Então, os leitores percebem que está tudo à nossa volta. O livro se passa no futuro e os personagens lembram o passado, e o passado é hoje.”

    Loyola é autor também de outro clássico da literatura, Zero (1975), que nasceu do sufoco sob a pressão da ditadura e sua censura, violência, torturas, prisões e guerrilhas. “Veja que usei o mesmo processo para Zero, mas ao contrário.

    Narrei o passado verdadeiro”, afirma. “Em Não Verás, olhei para o que poderia acontecer lá na frente. Em Zero, que levou dez anos para ser escrito, guardei várias notícias que os censores proibiram na ditadura militar – eu era secretário de redação na Última Hora, e recebia direto do censor o que estava proibido.”

    Loyola garante que não há uma só cena inventada. “Reescrevi à minha maneira tudo que os brasileiros tinham sofrido e não puderam ler naquele período nefasto, hoje negado. Ampliei a fórmula de Bebel que a Cidade Comeu, livro que teve influência direta de Manhattan Transfer, de John Dos Passos, e Marco Zero, de Oswald de Andrade. Fragmentei tudo, porque o Brasil me parecia estilhaçado por mil bombas de terroristas e da polícia.”

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