Liudmila Ulítskaia aborda política e gênero com sutileza em ‘Meninas’
Quando numa manhã de março de 1953 a escritora russa Liudmila Ulítskaia, então com 9 anos, ouviu no rádio que Stalin estava gravemente enfermo, fez um comentário à mãe que penteava seus cabelos: “Deve ser uma gripe ou um resfriado, e eles saem divulgando para o país inteiro!”. Levou um puxão tão forte na trança que a impressiona até hoje.
Os familiares, pouco simpáticos ao ditador, já morto naqueles dias, nunca falavam de política na frente das crianças. Com uma sutileza incomum, ela incorporou esse estado de espírito aos contos do livro Meninas, lançados pela primeira vez em 1993 e até agora inéditos no Brasil – quadro mudado pela Editora 34, que introduz agora a obra de Ulítskaia no País com a publicação do livro com tradução de Irineu Franco Perpétuo.
RÚSSIA NOS ANOS 1950. Como a escritora Veronica Stigger aponta na orelha do livro, as seis narrativas presentes em Meninas podem ser definidas como “terríveis e atraentes”. A violência dos relatos, atravessados por questões políticas e de gênero, é na maior parte das vezes sutil. As personagens habitam a Rússia de 1953, em que o autoritarismo abria pouco espaço para a dúvida e para a própria sutileza.
Ela reconhece que sua geração não viveu os piores momentos do país, e que praticamente não guarda memórias dos tempos de guerra. “Mas é verdade que vivíamos em pobreza, vestíamos roupas gastas e remendadas, mas já não sabíamos o que era a fome, que havia matado tantos”, explica a escritora, cotada há alguns anos para o Prêmio Nobel de Literatura, em entrevista ao Estadão.
“Tampouco conhecíamos o medo com que os nossos pais e avós viviam. Meus dois avôs passaram pelos campos de trabalho de Stalin e sobreviveram. Eu sempre tive repulsa pelo governo, algo que nunca fiz questão de esconder. Eu devo ter tido sorte, pois o governo nunca se deu conta da minha antipatia”, diz.
O PÓS-GUERRA. Em um dos contos, a chegada de filhas gêmeas atravessa de forma definitiva uma família já afetada pela guerra. Na história seguinte, já um tempo depois, as mesmas gêmeas se envolvem em conflitos da pré-adolescência contextualizados pela atmosfera sombria a que a escritora se referiu acima, com a família envolvida em monólogos interiores. “Era a música triste da insanidade familiar, da insolúvel reprovação feminina e da igualmente insolúvel teimosia masculina”, escreve.
Em outro conto, as “meninas” do título experimentam descobertas proibidas. Esse conjunto de instantes da vida cotidiana de um grupo específico – meninas de 9 a 11 anos – reverberam, por meio da escrita elegante da autora, no contexto social e político da época.
“A literatura é uma dádiva maravilhosa que o homem recebeu dos céus, a estupenda habilidade de criar textos”, afirma a escritora. “Nenhuma outra criatura tem essa capacidade, mas eu e você a temos. Para mim, a política é como a lama que tenho sob os pés. Ela está quase sempre relacionada ao egoísmo: no melhor dos casos, a um egoísmo nacional; no pior, ao egoísmo pessoal. Quanto à relação entre política e literatura na Rússia, disso não sei falar. Nunca pertenci a nenhum partido político, mas desde os tempos da grande literatura clássica há um princípio que se preservou na Rússia: o governo não gosta de escritores que pensam e trabalham com liberdade, e os escritores, nessa exata medida, não gostam do governo…”
Liudmila Ulítskaia é formada em biologia, mas a política a afastou desse mundo em direção às letras ainda no início da sua carreira como cientista. Escreveu contos infantis, para teatro, artigos e roteiros de filmes até estrear na literatura em 1993 com o livro Parentes Pobres, publicado primeiramente na França, depois de passar de mão em mão por algum tempo.
O TEMPO. Poucos anos depois, ela recebeu o Prix Médicis, um dos mais prestigiosos prêmios literários franceses, e a partir daí sua trajetória como escritora deslanchou. Como na sua vida, o tempo exerce papel fundamental na sua literatura.
“Essa é uma particularidade maravilhosa do ofício da escrita, do modo como eu o entendo: a oportunidade de trilhar outra vez um caminho já vivido. E o tempo, de certa forma, perde sua linearidade; ele se faz curvo e se enrola em espirais, como se ficasse ali ‘de plantão'”, comenta.
“Na minha primeira memória há quadros irrevocáveis, inesquecíveis, que me acompanharão para sempre: lembro-me de dar meus primeiros passos, lembro-me do meu bisavô me embalando com força num balanço, e que ali pela primeira vez senti o medo de cair e me quebrar. Lembro-me da morte do meu bisavô, de como ele me buscou com os olhos e disse suas últimas palavras: que boa menina, tudo vai ficar bem… Eu tinha 7 anos, ele, 93… Isso é uma vida longa… E hoje, aos 78 anos, o que sei sobre o tempo é uma coisa muito importante: que o meu está se acabando.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.